Em diversas ocasiões falei a respeito do poder catártico ínsito nos filmes de terror, e não creio seja necessário debruçar-se novamente sobre o mesmo assunto, frisando os mesmos nomes de sempre.
O próprio Ingmar Bergman, que encabeça esta lista de filmes que versam, direta ou transversalmente, sobre a temática da pandemia, encontrara, em 1957, a raison d’être do seu magnum opus na ferida social então representada pela Guerra Fria, e no conseqüente medo atômico engendrado por este conflito: isto é, a praga que assola as terras suecas em O Sétimo Selo estava correlacionada ao pânico social sentido pelos espectadores de então. E pelo seu criador, obviamente.
Em se tratar do mestre sueco, torna-se difícil esquivar-se de metáforas como as dos espelhos e as dos silêncios, leitmotiven de sua filmografia como um todo: há de se perguntar quais reflexos e quais timbres Bergman conseguiria, hoje, imprimir em suas poesias de celulóide, para melhor capturar o zeitgeist do mundo de 2020.
Não, não é apenas catarse. Os filmes que aqui indico mais me servem para exorcizar o pânico pandêmico, o esgotamento nervoso decorrente do enclausuramento social e o desalento diante das sombrias perspectivas futuras.
O SÉTIMO SELO (Det sjunde inseglet, 1957)
Século XIV. O cavaleiro Antonius Block, de volta das cruzadas, é desafiado pela Morte em pessoa numa partida de xadrez. A Morte é bem clara desde o princípio: ela nunca perdeu. Portanto, assim como a vida, o jogo é sem sentido.
Quem melhor definiu o cinema de Ingmar Bergman, para mim, fora Martin Scorsese: os filmes do sueco são, segundo ele, como preces íntimas. E aqui, acrescento: ao público, o prazer de escutá-las e a aflição, e o tormento, de nem sempre comprendê-las.
Bergman revela muito de si mesmo em cada filme, e aqui, o mestre parece debruçar-se tanto sobre a ingenuidade da infância, bem como sobre a desilusão da idade adulta: afinal, a ideia lhe surgiu quando criança, ao observar o afresco de Albertus Pictor, na igreja de Taby, que representava a morte jogando xadrez com um cavaleiro.
Se no jogo cada peça possui uma determinada função, na pélicula, cada personagem põe em cena uma específica nuance do espirito inquieto do diretor. Por um lado, por exemplo, temos Jof, um artista que não se lamenta da miséria em que vive, e que, portanto, representa uma crença inabalável no sobrenatural, no divino, no milagre. Por outro lado, o escudeiro Jöns é o niilista que aceita a ausência de Deus, uma contraparte adulta, há muito moldada pela vida. No meio desses dois extremos, oscilante entre o racionalismo severo do segundo e o conforto da fé do primeiro, está Antonius. A dúvida que aflige este último não é apenas um questionamento íntimo. Afinal, externamente, Deus parece ter abandonado a Terra, uma vez que esta é flagelada pela Peste Negra, uma doença que matou ”apenas” um terço da população europeia. Como encontrar salvação no meio do tormento? Bergman responde por meio de uma cena simples, a única em que vemos Antonius sorrindo, durante um mero almoço com a família do artista Jof: não há salvação, mas há, pelo menos, conforto na humildade, nas simples coisas da vida.
A ORGIA DA MORTE (The Masque of the Red Dead, 1964)
Idade Média. Ao colher lenha numa floresta, uma senhora se embate numa figura sombria, vestida de vermelho, da qual não vemos o rosto. Esta última, ao gotejar sangue sobre uma rosa branca, lhe entrega, então, a mesma flor, só que com pétalas escarlates. Ele ordena à senhora de informar aos habitantes de seu vilarejo que a liberdade está próxima.
Todavia, ao retornar ao povoado natal, a senhora não traz apenas o relato deste encontro, como também a praga da Morte Vermelha: um vírus que, pelo que entendemos, mata seu hospedeiro fazendo-o suar sangue até a morte.
Como se esta temível força da natureza não fosse suficiente, o despótico principe Próspero decide frear a contaminação de forma rápida e incisiva: ele queima o vilarejo e boa parte de sua população. Antes disso, o despota se dá ao prazer de raptar a belíssima Francesca, sem perder a chance de subjugá-la à sua vontade, uma vez que leva consigo, como prisioneiros, o pai da donzela e seu noivo, Gino.
O diretor Roger Corman não comede a crueldade de seu vilão: Prospero é um satanista, um sádico, que mata seus suditos e humilha os residentes em seu castelo não apenas por prazer, mas para chamar a atenção de sua divindade. Obstinado em converter a cristã Francesca numa obsequiosa escrava de Lúcifer, ele a seduz com todos os meios de que dispõe: inclusive, ele dá prova da inexistencia de Deus, uma vez que seus gestos crueis não são detidos por nenhuma suposta divindade, ao passo o mal se insinua cada vez mais em sua hospede.
Nas entrelinhas do roteiro, assinado por Charles Beaumont e R. Wright Campbell, lê-se um monito sobre o poder, ou melhor, sobre a flutuação do poder, uma metáfora capturada pelo então diretor da fotografia Nicolas Roeg, tanto nos chicotes de câmera, como na mise en scène, ao ressaltar, por exemplo, o pêndulo de um relogio em uma cena fundamental.
Prospero acredita ter investido na crença correta, no satanismo, cego diante do óbvio: seus sucessos decorrem do poder, não do sobrenatural. O indivíduo vestido de vermelho, isto é, personificação da morte, também representa o inevitável, o acaso. E o acaso, assim como um vírus, desconhece o poder, matando à esmo, atingido a ricos e pobres, a crentes e descrentes. Prospero descobre, com horror derradeiro, que a Morte Vermelha não é um embaixador de Satanás. Pior, a Morte Vermelha desconhece qualquer mestre, afinal, diz ela, o homem cria seu Deus, seu Céu e seu Inferno. Mas, como concluira Edgar Allan Poe no conto homônimo, quem domina, afinal, sobre tudo (e todos), são a obscuridade e a decadência e a morte vermelha.
O ENIGMA DE ANDRÔMEDA (The Andromeda Strain, 1971)
Antes de ganhar a fama e o sucesso – e tudo que decorre destes dois elementos – com a saga do Parque dos Dinossauros, Michael Crichton escrevera um dos maiores Sci-Fi Thrillers da literatura mundial, brilhantemente transposto para o cinema pelo roteiro de Nelson Gidding e pela direção minuciosa de Robert Wise.
A história é tão simples quanto eficaz. Um esquadrão do Governo norte-americano se aproxima de um vilarejo anônimo do Novo México para recuperar um satélite que aterrissou num deserto próximo. Inesperadamente, os dois agentes enviados para a operação de resgate morrem, tendo tempo, todavia, de apontar, via rádio, que as estradas da cidade estão tomadas por cadáveres.
Em pânico, numa missão secreta, o Governo estadunidense monta uma equipe composta pelos mais brilhantes cientistas do país para desvendar o mistério. Logo, os quatros doutores escolhidos conseguirão isolar um vírus oriundo do espaço, capaz de matar instantaneamente qualquer forma de vida terrestre. O tique taque do relógio é implacável, pois, o laboratório subterrâneo no qual os nossos protagonistas se encontram, além de ser equipado com tecnologia de ponta, possui um sistema de autodestruição atômica que é ativado em caso de contaminação.
A ficção científica de Michael Crichton não brinca apenas com o suspense, tangenciando, em determinados momentos, aspectos que brincam com o sagrado: os sobreviventes do vilarejo são um idoso sem-teto viciado em alcóol e um bebê recém-nascido que não para de chorar. Estaria a cura contida nesses dois seres? Se sim, como obtê-la?
O EXÉRCITO DO EXTERMÍNIO (The Crazies, 1973)
Década de ’70. A cidade de Evans City, Pennsylvania, tem suas águas contaminadas por alguma arma biológica que fugiu das mãos do exército norte-americano. Logo, os habitantes que beberam o líquido infectado do reservatório local ou morrem ou, na pior das hipótese, tornam-se assassinos ensandecidos.
O diretor George A. Romero, entre o ano de 1968 e o ano de 1978, tira uma pausa de seus filmes sobre os mortos-vivos, tentando abordar outros gêneros cinematográficos, como o romance em There is Always Vanilla, em 1971, e o drama em Hungry Wives, em 1972. O mestre retorna ao terror somente no ano seguinte, em 1973, mesclando-o ao thrilling de ficção científica, sem nunca deixar de lado suas contundentes críticas sociais: de fato, a história não acompanha apenas um grupo de sobreviventes ao vírus, que tenta escapar do cerco militar da cidade, mas, também, ao acompanhar os esforços inúteis do Dr. Watts de encontrar uma cura, nos mostra a ineficiência da máquina científico-militar, uma vez que o vemos obrigado a trabalhar com apenas os escassos recursos tecnológicos presentes no laboratório do colégio local, lugar onde estão sendo apinhados os loucos do título original.
A cena fundamental do filme ocorre próxima do final, quando um dos nossos protagonistas, aparentemente são, enlouquece do nada e tenta estuprar a própria filha, Kathy. Esta última, abalada, sai do esconderijo e é logo cercada por milatares. Kathy ri, em delírio, incapaz de suportar a situação recém-vivenciada e de interpretar a que está tomando forma ao seu redor. Os milatares duvidam se ela está contaminada pelo vírus ou se está, simplesmente, desesperada. Na dúvida, atiram.
Sutilmente, Romero nos diz que na luta travada entre os militares – aqui, desumanizados em seus trajes brancos e máscaras de gás pretas –, que dizem preservar a sociedade, e os cidadãos enlouquecidos, que se rebelam às imposições desta última, só há uma única certeza: sangue será derramado. E em grande quantidade.
OS DOZE MACACOS (Twelve Monkeys, 1995)
O futuro é história. E a história de Os Doze Macacos é absurdamente complexa. No ano de 1996 o mundo foi contaminado por um vírus que exterminou 99% da população mundial. Em 2035, os poucos sobreviventes vivem no subsolo, entre prisões grotescas e galerias de antigos esgotos. O mundo acima foi tomado pelo frio e pelo reino animal.
No submundo, dominado por um corpo burocrâtico científico-militar, não há população livre, mas, sim, presos. James Cole, um dos prisoneiros encarregados para recuperar material humano na perigosa superfície, é atormentado por sonhos recorrentes que são, ao mesmo tempo, lembranças de um passado esquecido e flashes de um trágico futuro. Cole é, então, selecionado para uma missão fisica e psicologicamente desgastante, sendo enviado, mais de uma vez, para o passado, por meio de uma defeituosa máquina do tempo: o objetivo consiste em coletar informações sobre o vírus para que os cientistas possam desenvolver uma cura.
O roteiro escrito à quatro mãos por Janet e David Webb Peoples toma como base o curta-metragem francês La Jetée, de 1962. Mas lá onde a obra-prima de Chris Marker trabalhava na sugestão e na experimentação sensorial, o remake norte-americano investe em inúmeros acrescimos narrativos e, de quebra, brinca com a metalinguagem. Terry Gilliam, um dos maiores expoentes do maneirismo da sétima arte, foi, portanto, a melhor escolha possível para dirigir esta bizarrice da ficção científica. Em Gilliam convivem inúmeras influências artísticas, desde uma composição da imagem hipertrófica felliniana até um expressionismo estético à la Orson Welles e Fritz Lang, passando pelo surrealismo buñueliano e por uma tendência à comicidade slapstick herdeira de Buster Keaton. Seus herois, reminescências dos romances de Franz Kafka e de Philip K. Dick, acabam se envolvendo em tramas alucinantes e em subtramas paranóicas, permitindo ao ex-membro do Monty Python de dar vazão ao seu ecleticismo figurativo: seus trabalhos são pastiches que mesclam o sublime com o kitsch, o antigo com o moderno, o belo com o feio, a alta cultura com o pop, e por aí vai.
Nas mãos de Gilliam, Os Doze Macacos deixa de ser apenas uma versão inchada de um dos pilares da Nouvelle Vague francesa, tornando-se um glorioso exercício de cinema pós-moderno. E pós-moderna é uma das sequências que compõem o ato final do filme, a que se passa num cinema decadente, onde estão escondidos James Cole e sua amada, a doutora Kathryn Railly: na telona de uma sala quase vazia está sendo projetado Um Corpo que Cai (Vertigo, 1958), a obra-prima de Alfred Hitchcock. Mas enquanto Hitchcock utilizava-se de uma história de detetive para tratar de obsessão e pulsões sexuais, Gilliam parece seguir um caminho contrário. De fato, a loucura e a identidade pertubada do nosso viajante do tempo, tão friamente estudadas e tão rapidamente catalogadas pelos psiquiatras dos asilos pré-apocalípticos, servem de gatilho para que o diretor, em seu devaneio retro-futurístico, possa nos transmitir uma lição: o futuro é história. E a história, infelizmente, costuma se repetir.
CABANA DO INFERNO (Cabin Fever, 2002)
Cabin Fever é um título com duplo sentido funcional em língua inglesa: se, por um lado, o significado literal (febre de cabine) sugere a manifestação claustrofóbica vivenciada pelo grupo de adolescentes protagonistas, pelo outro, sua acepção clínica, refere-se a um tipo específico de doença que é transmitido em cabines ou em banheiros. Afinal, vale ressaltar que o diretor e co-roteirista Eli Roth foi influenciado a criar esta história com base em uma triste experiência pessoal: Roth contraiu uma infecção de pele durante uma viagem à Islândia.
A doença posta em cena no filme existe no mundo real: fasceíte necrosante. Todavia, a forma como esta é veículada, a rapidez de sua propagação e a cosmética demasiadamente gore que a caracterizam no filme são pura e simples liberdades poéticas.
A história é de uma simplicidade assustadora. Um grupo de amigos aproveita das férias da faculdade para curtirem um período numa cabana isolada no meio do nada, com o intuíto de matar o tempo através do sexo, do álcool, da droga e do tiro ao alvo em inocentes esquilos.
Obviamente, um caçador contrai um vírus carnívoro que necrotiza o corpo humano numa velocidade sobrenatural. Obviamente, assustados, os membros do quinteto queimam o coitado na fogueira. Obviamente, o cadáver carbonizado da vítima cai num reservatório de água potável, a mesma água que abastece a cabana dos nossos desaventurados heróis.
Deus ex machina posto de lado, o trabalho de Roth é uma homenagem ao cinema grindhouse splatter das décadas de ’70 e ’80: Cabana do Inferno traz elementos presentes em filmes como Uma Noite Alucinante – A Morte do Demônio (The Evil Dead, 1981), O Massacre da Serra Elétrica (The Texas Chainsaw Massacre, 1974), Aniversário Macabro (The Last House on the Left, 1972), A Noite dos Mortos-Vivos (Night of the Living Dead, 1968), Amargo Pesadelo (Deliverance, 1972), The House on the Edge of the Park (La casa sperduta nel parco, 1980) e o já citado Exército do Extermínio (The Crazies, 1973), dentre outros.
Mesclando humor negro com gore extremo, Roth demonstra como o elo das amizades contemporâneas é não apenas frágil, mas até mesmo deletério, uma vez que, para se protegerem da doença, dois dos personagens principais acabam pensando por si só, chegando a pôr em risco a vida dos demais. O amor que Paul diz sentir por Karen revela-se mera obsessão sexual, tudo muito bem trabalhado numa cena que troca o tom romantíco entre os dois, embalado pelos acordes musicais de Angelo Badalamenti, por cenas de body horror grotesco, digno da saudosa dupla Yuzna & Gordon.
FILHOS DA ESPERANÇA (Children of Men, 2006)
Novembro de 2027. As TVs anunciam a morte de Baby Diego, a pessoa mais jovem do mundo, que havia 18 anos de idade. Isto é, há quase duas décadas, a humanidade é assolada por um vírus que torna o ser humano infértil, o que levou ao colapso social e econômico de inúmeros países.
O Reino Unido é uma panela de pressão: por um lado, por ser um dos poucos Estados a possuir ainda um Governo, há de resistir militarmente a um fluxo migratório constante; por outro lado, há de combater o terrorismo praticado por Os Peixes, um grupo que luta pelo direito dos imigrantes.
O tom fúnebre e desolador da pélicula, perfeitamente captado pela fotografia de Emmanuel Lubezki, nada mais é que uma manifestação do desânimo e do vácuo que tomou conta da vida de Theo Faron, um burocrata que acredita ter deixado para trás seu passado de ativista. A jornada de Theo começa no momento em que a líder do grupo terrorísta, também sua ex-mulher, Julian Taylor, o contata para que, através de seus amigos influentes, a ajude numa missão: embarcar uma jovem chamada Kee no navio Tomorrow. O motivo? Kee está gravida de 9 meses e, talvez, em seu ventre reside a cura para o vírus da infertilidade.
A obra é repleta de elementos sagrados, desde o milagre da gravidez como símbolo de esperança, até o arco narrativo descrito pelo nosso herói, em assonância com a via-crúcis de Jesus: afinal, ambos estão dispostos a se sacrificarem pelo bem da humanidade. Também, lá onde o segundo questiona-se se foi abandonado pelo Pai, o primeiro perdeu as esperanças há muito tempo.
O diretor Alfonso Cuarón, aqui no melhor trabalho de sua carreira, flerta com o misticismo religioso em diversas cenas, haja exemplo de dois momentos-chave: na primeira reviravolta, quando um atônito Theo, diante do barrigão de Kee, lhe pergunta como ela engravidou e esta última, tirando sarro dele, mente descaradamente, afirmando ser virgem; e no clímax final, quando Theo recupera Kee e o choro do bebê, recém-nascido, é capaz de interromper a troca de tiros entre terroristas e militares, estes últimos abrindo caminho num silêncio sagrado.
A linearidade da trama, em certos momentos até demasiadamente previsível, é esquecida diante da direção do cineasta latino-americano, que nos brinda com tomadas longas, sem cortes, capazes de deixar boquiaberto até mesmo o crítico mais severo.
PONTYPOOL (idem, 2008)
Pontypool, Ontário, Canadá. Grant Mizzy, um apresentador de rádio de um programa matutino que poucos escutam, acompanha, através de sucessivas ligações, o progredir de um vírus misterioso altamente contagiante, capaz de transformar as vítimas em indivíduos violentos.
Essa é a premissa. Simples em aparência, Pontypool é diferente de tudo aquilo que você pode imaginar ao pensar em filmes que lidam com o tema da pandemia.
O diretor Bruce McDonald traz aqui a claustrofobia de A Noite dos Mortos-Vivos (Night of the Living Dead, 1968) intercalada pelo thrilling de O Enigma de Andromeda (The Andromeda Strain, 1971): do clássico de Romero, ele toma emprestado não apenas a ideia de uma única locação e do desenvolvimento da ação em apenas um dia, mas, principalmente, a incisiva crítica que o falecido diretor de Pittsburgh move aos meios de comunicação de massa; da obra cult de Robert Wise, ele copia a capacidade deste último de criar o suspense, e o terror, por meio, apenas, do som. Portanto, para quem imaginou uma estação de rádio rodeada por zumbis, que ditam o ritmo da narrativa na base dos jump scares, talvez o filme surpreenda de forma demasiadamente positiva. Ou não.
Elemento fundamental para interpretar o longa-metragem é o vetor do vírus: a palavra. Isso mesmo! De fato, a narrativa não explica, mas apenas sugere que algumas palavras do idioma inglês estão contaminadas. Isto é, apenas pronunciando determinadas letras, o sistema nervoso da pessoa entra em curto-circuito e, com o progredir da infecção, a vítima se torna uma criatura agressiva.
Vozes e ouvidos: isso é o rádio. Por sua vez, o cinema é, também, visão. O perigo é anunciado e presenciado apenas por telefonemas. Não o enxergamos. Gritos, estáticas, sussurros, prantos. O tempo todo, almejamos ver o monstro, o mal, ao passo que o tememos cada vez mais, cientes de sua fatalidade. Mas esse desejo nunca é satisfeito. Em troca, a tensão cresce, rumo a um final surpreendente e criptíco, em que não apenas a linguagem, mas a película em si entra em colapso.
Impossível não lembrar de Orson Welles, que, em 30 de outubro de 1938, com apenas 23 anos de idade, conquistou fama mundial graças ao espetáculo radiofônico A Guerra dos Mundos (The War of the Worlds, 1938). O mestre instaurou o pânico em boa parte dos Estados Unidos, fazendo com que os ouvintes acreditassem que estivesse ocorrendo, de fato, um ataque alienígena. Seria Pontypool, que se passa 70 anos depois da pegadinha wellesiana, uma vingança por parte do público?
AO CAIR DA NOITE (It Comes at Night, 2017)
Em algum lugar dos Estados Unidos, num futuro impreciso, um mal não identificado, que se espalha pelo ar, eliminou boa parte da população mundial. Os sobreviventes se acostumaram a viverem isolados, sem água corrente e sem eletricidade.
Acompanhamos a jornada de uma família, composta por Paul, o pai, Sarah, a mãe, e Travis, o filho. Eles acabaram de enterrar o patriarca, o avô de Travis. Mas a situação só deteriora quando decidem acolher uma segunda família, composta por Will, sua esposa Kim, e o filho deles.
Além de A Noite dos Mortos-Vivos (Night of the Living Dead, 1968) e de O Iluminado (The Shining, 1980), o diretor e roteirista Trey Edward Shults menciona a filmografia de Paul Thomas Anderson e de John Cassavetes como principais fontes de inspiração. Portanto, não surpreende que, por trás do elemento terrorífico externo, o cerne da pélicula é o medo do desconhecido, um desconhecido que assume as feições tanto do segundo grupo familiar, como do ingresso de Travis para a idade adulta.
De certo, Ao Cair da Noite é um dos melhores filmes de 2017.
Escrevi uma análise detalhada sobre o uso que o diretor faz da suspense no link a seguir:
IV CINE HORROR - Mostra de Cinema Fantástico. 17, 18, 19, 20, 25, 26 e 27 de Outubro - 2019