Título Original: The Human Centipede (First Sequence) (Holanda, 2009)
Direção: Tom Six
Roteiro: Tom Six
Elenco: Dieter Laser, Ashley C. Williams, Ashlynn Yennie.
Duração: 92 min.
A técnica da indústria é muito simples quando se trata de deglutir, assimilar e defecar a estética “indie”. Durante a [quase] hora e meia de A Centopéia Humana o que os olhos experientes mais reconhecerão é a total esperteza do diretor Tom Six.
Se trata de um horror fantástico com os pés fincados no biológico, mas não devemos esperar qualquer substância além da história em si. Os conceitos subentendidos dignos de um filme de Romero, Cronenberg e tantos outros mestres não constam aqui, mas nem tudo está perdido: um conceito mais amplo, englobando a indústria cinematográfica como um todo nesta transição de décadas, emerge. “Alimente-a!”, grita o Dr. Heiter, interpretado pelo ossudo Dieter Laser. A personagem engolindo merda, nesse momento, é um reflexo do espectador.
Vamos ao ponto de partida. Não existe nada de chocante no filme de Tom Six, não existe escatologia, não há sangue bastante, não há decomposição suficiente – em verdade, o filme é tão limpo quanto uma sala de cirurgia. Abrem-se as portas para um horror psicológico dentro de um conceito fantástico demais, o que não é de todo desconexo da uma realidade presente nas produções cinematográficas hoje. Quando vemos Batman e o Homem de Ferro tomando remédio pra depressão, discutindo assuntos sérios de negócio, se embebedando e, enfim, invadindo da forma mais real possível o cenário urbano, enquanto o Coringa é um fumador de crack com a maquiagem derretendo no rosto, não podemos reclamar ao ver o Dr. Heiter costurando bocas com cus.
Ainda, a estética presente em muitas das seqüências se coloca dentro das artimanhas “indies” de gente como Jason Reitman. O que dizer então da abertura? Uma participação especial de Gus Van Sant ou uma mimese necessária hoje em dia para que o seu filme venda a um público que se diz “alternativo”?
Partindo-se da lógica e aceitável “máscara de realidade” colocada nas obras fantásticas nestes tempos, percebe-se que embora as portas estejam abertas para o horror psicológico em A Centopéia Humana, nada passa através delas. As portas ficam abertas, esperando. O Super-cine estaria também esperando, na Rede Globo, não fosse pela premissa. Três pessoas costuradas, boca-cu, boca-cu. O choque não passa disso, e o interesse despertado pelo filme esbarra na impossibilidade de tornar a obra melhor que a idéia.
A provável pena ou afetação proveniente de ver os personagens em uma situação decadente como a colocada perde qualquer poder além do imagético quando simplesmente não sabemos nada sobre esses personagens. Mal se deixa claro que as duas garotas capturadas são amigas e turistas em busca de diversão pela Europa; que o cara gordo dirige um caminhão, e que o japonês… bem, do japonês só se sabe que ele possui uma tatuagem do coelhinho da playboy. Estas mesmas definições que coloquei aqui são as apresentadas no filme, nada além disso. Não há uma construção consistente desses personagens, e, portanto, o considerável final (o meio sempre sofre mais, hein, Mr. Laser?) perde sua força.
O próprio Dieter, cuja presença imponente tira o sono causado pela deprimente atuação das garotinhas juvenis, só consegue inspirar desconforto pela própria carcaça que Deus lhe deu, já que as chances de falar são poucas e o personagem é mais um vazio que pode ser descrito como “o aposentado cirurgião separador de siameses”. A isso, pelo menos, se acrescenta que ele não gosta de gente, não se alimenta corretamente, tem problemas de insônia e perdeu seus 3 rottweillers queridos de uma só vez. É, provavelmente, o personagem mais bem construído do filme (sendo otimista) – ainda assim, não se gastam falas para isso. A imposição imagética do medo, neste caso, se assemelha ao aplicado no caso do Drácula intepretado por Bela Lugosi. Imagem forte, conteúdo de menos.
Mas, assim como Tod Browning se aprimorou chegando ao maravilhoso Freaks, quem sabe não venha a ocorrer o mesmo com Tom Six.
Ainda assim, pode-se dizer que A Centopéia Humana, antes de descambar para a síndrome de seriado policial, é um filme consideravelmente convincente e bem realizado no que tange à edição, à construção de cenas… tudo isso na parte visual. É um filme da fácil “assistibilidade” e fica MUITO claro que alguém precisa melhorar MUITO na escrita para que boas premissas não sejam, mais uma vez, convertidas em um resultado meramente “assistível”.
Voltando aos primórdios desta conversa, e tendo passado pela mimese da estética “indie”, pela opção de fazer o filme “limpinho” como uma sala de cirurgia e por essa decadência policial que citei no final da história, digamos que quem coloca a boca no cu dos outros somos nós, os espectadores. A técnica muito chula de adaptar uma boa idéia a tudo que possa agradar faz das produções um desperdício e de nós uns grandes engolidores de merda. Aplaudir bons resultados de produtoras independentes, assim como de diretores novatos, se tornou um grande perigo: logo surgem milhares de filmes tangíveis-de-ser-bons que se apóiam somente em copiar estilos aplaudidos ou em se aproveitar do nome de diretores elogiados enquanto o trabalho dos mesmos é picotado e censurado em todos os níveis possíveis.
Assim, a máquina de moer carne consegue por fim destruir tudo que há de bom que venha de fora do seu próprio círculo. Vejam o Alexandre Aja aí agora, com Piranha 3D.
Triste.