(Antichrist/ França, Itália, Polônia, Dinamarca, Suécia, Alemanha/ 2009)
Direção: Lars von Trier
Roteiro: Lars von Trier
Elenco: Willem Dafoe, Charlotte Gainsbourg, Storm Acheche Sahlstrøm.
Duração: 108 min.
Sinopse: Casal (Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg) devastado com morte do único filho muda-se para uma casa no meio da floresta para superar o episódio. Mas os questionamentos do marido, psicanalista, sobre a dor do luto e o desespero de sua esposa desencadeiam uma espiral de acontecimentos misteriosos e assustadores. E as consequências dessa investigação psicológica são as piores possíveis.
Certamente o filme mais chocante que já fora apresentado ao festival de Cannes, capaz de dividir a platéia em dois, entre quem o aplaudia e quem o vaiava.
O filme choca desde as primeiras cenas. Através de um slow motion em perfeito branco e preto, a câmara foca em duas situações diferentes: em uma, assistimos a um casal que faz sexo debaixo do chuveiro; na outra, observamos o filho desse mesmo casal que, ainda criança, morre jogando-se de uma janela aberta.
Há o enterro e, conseqüentemente, uma lenta descida ao inferno. A esposa entra em depressão e o marido psicólogo tenta salva-la de seu tormento, mesmo ciente de estar violando as regras da conduta terapêutica.
Como as coisas não melhoram dentro da casa em que ocorreu a tragédia, os dois decidem viajar para um chalé situado em uma floresta chamada Éden. O objetivo da terapia é de superar o medo que a esposa sente da natureza.
Com o passar do tempo, o delírio dela parece tornar-se contagioso, como uma doença: o marido, quando não é obcecado por sonhos assustadores, é perseguido por monstruosas alucinações, protagonizadas por um veado, uma raposa e um corvo.
São ele e ela, sozinhos. Um Adão e uma Eva perdidos em um bosque volúvel, pintado com pinceladas cinzentas, quase um reflexo cromático da psique dos dois protagonistas.
Aos poucos, o real torna-se surreal e o pesadelo toma conta da situação.
O percurso terapêutico revela a ambigüidade da mulher, que já havia passado o verão em Éden, com seu filho, para concluir uma tese sobre a persecução das mulheres.
Ele recebe uma ligação dos médicos legais, os quais suspeitam que o filho tenha sido vítima de maus tratos por causa da deformação aos pés.
Ele percebe as pulsões destrutivas dela.
Ela decide arrastá-lo em um limbo de violência.
Começa um clímax de puro terror: masturbações sangrentas, carnes perfuradas, torturas e clitoridectomias são algumas das peças que compõem esse violento mosaico.
Muitas foram as interpretações dadas a este filme.
Há quem o considera um simples ato de misoginia, uma válvula de escape para o ódio que o diretor sentia por sua mãe e pela aversão que ainda prova pelas mulheres.
Em resposta a essa visão, alguns avançam uma leitura feminista, pois a cena final parece um hino à emancipação da mulher.
Não faltam psicólogos que o interpretam como sendo o resultado de anos de terapia, pois todos sabem das profundas crises que atormentam o escritor dessa peça dantesca.
Enfim, inúmeros são os indivíduos que simplesmente o condenam como sendo um trabalho grotesco.
De uma coisa temos certeza: Lars von Trier não é uma pessoa normal. Suas paranóias e aflições impregnam cada seqüência da película. A própria escolha dos atores atormenta o público: ele com seu rosto afiado, vincado pelas rugas; ela com sua ausência de beleza, contida na vacuidade do olhar.
O criador do movimento Dogma 95 traz consigo os vestígios de uma carreira cinematográfica atormentada, e o faz através da câmera usada na mão, irritante mas envolvente.
Não importam as referências a uma antiga fábula sérvia, o que vale ressaltar é o talento de um artista capaz de transformar sua dor em arte, pois todas as seqüências oníricas a que assistimos são oriundas de seu profundo desconforto: Lars escreveu esse filme enquanto passava por uma crise depressiva. O medo irracional por algo inofensivo, como a natureza, é um dos sintomas dessa terrível doença.
Certamente, o que ocorre após o enterro, é o resultado de uma reação psicológica a um violento estresse pós-traumatico. Todavia, a pergunta que não quer calar é a seguinte: onde estamos?
Afinal, quem é o protagonista? Assistimos através dos olhos dele? Ou é tudo um delírio vivido na cabeça dela? E se o diretor resolveu nos pôr no mesmo lugar de um Deus ex Machina como havia feito no final de "Ondas do Destino" (1996)?
De fato, o que não falta são as referências religiosas, tanto que a própria dor é vivida como martírio, um percurso parecido com aquele que o ator Willem Dafoe viveu em "A Última Tentação de Cristo" (1988) no papel de Jesus. As alegorias são próximas ao Inferno da "Divina Commedia": o cervo como portador de luz e de angústia; a raposa como símbolo do desespero e da hipocrisia; o corvo como mensageiro da dor e da escuridão.
Lars von Trier deita no divã da psicanálise cinematográfica e se estuda em silêncio.
Logo, cria dois personagens. Um homem para representar a racionalidade. Uma mulher para encarnar o delírio. O primeiro sobrevive, mas a qual preço?
Há um momento em que o marido sugere à esposa um exercício de imersão psicológica, um jogo que a leva a fundir-se com a grama da floresta: ela fecha os olhos e se desmancha na natureza, no seu maior medo.
Talvez seja isso o que diretor requer de seu público: um ato de coragem.