Batman Returns, o segundo filme do Cruzado de Capa feito por Tim Burton, pode ser interpretado de várias maneiras. Possibilidades que, de fato, estão encastradas na história, e no filme.
Pode-se ler, como estava de moda nos anos 80, e transparecia mais claramente no primeiro filme, de 1989: como almas atormentadas, divididas ou monstruosas. E sua relação com avatares animais; ou melhor, sua distância da humanidade, e sua bestialidade de fundo.
Outra modalidade é o foco, o holofote direcionado, aos aspectos sexuais da história. No caso de Selina Kyle/ Mulher-Gato, de seu feminismo, girl power. Mas que vai mais além do mero empoderamento, mas uma rota autodestrutiva, que levou ao seu aparente suicídio, ao final. Ou as referências a outras histórias, dos quadrinhos e outras mídias, como o seriado televisivo de 1966. De fato, o Pingüim candidato a Prefeito era o mote de dois episódios, como havia sido o Coringa em um museu de arte, e o dinheiro com seu rosto. Além disso, é uma história de pais e filhos: a mãe dominadora de Selina, os pais ausentes de Bruce e Oswald e Max Shreck como pai para seu filho, Chip – agindo, desde o início, em prol dele – e do respeito filial que este demonstra (curiosamente, a única relação normal, no entanto matizada pela ausência da mãe). Bruce, órfão, busca vingar os pais. Oswald, rejeitado, diz que queria saber quem eram (já sabia, aparentemente) e entendê-los em sua cruel decisão. E assim por diante. Também é interessante analisar o filme como pares e suas relações: Selina e Bruce, em seu affair e a esquizofrenia que compartilham; Wayne e Cobblepot, a aristocracia tradicional da cidade (Shreck lembra isso a Bruce Wayne); Wayne e Shreck, os milionários e o poder efetivo da cidade (ambos se confrontam sobre a decisão da usina); Selina e Shreck, empregado e patrão, unidos por abuso e vingança. O Pingüim e a Mulher-Gato, com seu apetite pela destruição e desprezo pelos czares da moda, e assim sucessivamente. A trama, intrincada e inverossímil, ganha riqueza com essas relações.
Esta abordagem julgo inédita: de Batman Returns como um patchwork de material mais antigo, de mitos e contos de fadas. Nesse sentido, os personagens são integrais, e navegam por entre imagens e situações anteriores, e com ressonâncias. A articulação entre as partes não é verossímil no sentido realista. Os diálogos não terão a continuidade dos diálogos reais. As situações falarão outra linguagem que não a da realidade.
O filme, como todo filme, é um esforço coletivo, submetido a alterações de toda sorte. O primeiro roteiro, de Sam Hamm, ainda chamado Batman II. O segundo roteiro – a base desse filme, de maio de 1991, de Daniel Waters. Alterações significativas, com eliminação de personagens, dão origem a um terceiro roteiro, de agosto de 1991, de Waters com parceria de Wesley Strick. Quando filmado, linhas inteiras sumiram. Muitas por sugestão do próprio Michael Keaton, que considerava que seu personagem falava muito (e falava, ambos, ele e a Mulher-Gato). Ainda assim, tomaremos esse filme como um todo, como algo completo. Encerrado, proposital, definido e inevitável.
Tomemos conta de que os Waynes e os Cobblepots aparecem como uma aristocracia, com mansões senhoriais e trejeitos arcaicos. Max Shreck é um capitalista, e um novo rico, ainda que classudo – no seu escritório, edifício e lojas estilo art decó – que mesmo se diz um judeu. Quem, no entanto, aparece como o judeu dos antigos contos é o Pingüim, quando recupera sua identidade pública de Cobblepot. Comecemos do início do filme.
Quando o pequeno Oswald (que, enjaulado, mata um gato preto) é enjeitado, jogado no parque – na floresta – pelos pais. É levado pelas águas, flutuando em um cesto. Passando por túneis, chega a um Reino distante, onde é recebido. O filho jogado nas águas é um tema antigo, mitológico. Para ser morto, foi Perseus lançado às águas. Para escapar com vida foi Ciro, rei da Pérsia, e Moisés. Ressonâncias bíblicas aumentam quando se vê que há um salto de 33 anos – o tempo da vida de Cristo, dado pela tradição católica – desde aquele incidente até a data da história. Pode-se entender aquela viagem pelo submundo como uma das formas da morte. A passagem pequena torna-se um grande canal. As águas são negras, pesadas. E ele renasce de outra maneira, como um outro tipo de ser.
O espaço em Gotham não é contínuo, nem calcado no mundo real. Ele é formado por domínios, pedaços distintos, reinos à parte, com estranhas articulações, por cima e por baixo.
O Mundo Ártico, esse inverossímil palácio de gelo onde os pingüins mandam, é parte de um zoológico abandonado, e onde um bebê é alçado à condição de rei, de senhor dos pingüins. Seus súditos, a quem ele fala e convoca no final para a batalha contra os homens (quando se assume como um Pingüim) e que o escoltam para o fundo das águas, quando ele morre. Esse reino se mescla com as idéias do submundo, que permeia toda Gotham, comunica-se com todas as partes pelos rios, canais e esgotos. Isso permite que o Pingüim observe a situação acima dele a partir das bocas-de-lobo. Que, via um alçapão, drague Shreck para o submundo. Que recolha os rejeitos lançados ao esgoto, como o lixo químico e os documentos rasgados de Shreck, mesmo os retalhos de um cadáver. Que emerja, como quando salva o bebê raptado do Prefeito, e irrompa em pleno salão da Maxquerade de Shreck. O esgoto nunca é tratado como águas servidas, e sim como uma rede estranha e fantasmagórica de águas gélidas. Os túneis são imensos em sua largura, como nunca seria de esgoto ou água pluvial. Operam mais como um submundo, um underworld, na qual o Pingüim navega, e depois o Batman, invadindo com sua nave.
A trajetória do Pingüim é o de alguém a quem o estatuto de humano foi negado. Os médicos o identificam como um monstro. Ele é enjaulado em vez de ter um berço de bebê. Os pais o rejeitam, e o jogam às águas, onde outras criaturas o reconhecem como um igual e depois como rei. Ele busca ascensão, sair do submundo, sair das zonas frias, para o calor da civilização, ser gente. Comer algo além de peixe cru. Ter o direito a um nome próprio (Oswald Cobblepott) e um passado. A ter uma mulher. Mas ele fala em sentimentos que nunca os demonstrou. Ele é um monstro moral, antes que físico. Não pretende se apaixonar, pretende apenas possuir fisicamente as mulheres: a mulher do publicitário, as jovens que o admiram e a Mulher-Gato. Em sua trajetória, renega por um momento seus governados, que se situam em dois planos: os pingüins, que somente no final são tratados com o respeito devido, o freak show do circo, que opera como uma trupe mágica: imprevisível, fascinante, iridescente. Eles ficam nos bastidores da campanha. Se o térreo é humanizado (iluminado, móveis de escritório, com gente circulando, seu poster humanizado) o piso superior é o seu verdadeiro lar. Um refrigerador torna o ambiente mais propício para ele. Lá está sua trupe, escondida. Ali ele se despe, usa seu pijama.
O Circo é um grupo de criaturas de fantasia. Eles têm força própria. (Embora se articulem mal com seu Reino de Pingüins). Os seus aparatos são feéricos, como o sinalizador no Batmóvel, as bombas, os foguetes, as armas de mão, os guarda-chuvas do próprio Pingüim. A própria gangue é interessante. Ela é composta por motoqueiros macabros, um realejo com metralhadora, palhaços, o strong man, malabaristas com chamas, homens de pés de pau, cuspidores de fogo com roupas demoníacas, monociclistas. O circo já tinha um histórico de suspeita por crianças desaparecidas: sim, Burton explora o imaginário dos ciganos. Parecem uma trupe cigana, no esconderijo, ao lado das plantas do Batmóvel. Eles são mágicos, isso é o que importa. A bomba que usam é colorida e histriônica, com um grande relógio e um pavio. O sinalizador que usam no Batmóvel é uma esfera colorida que gira, com um led vermelho piscando, o denuncia. Quando abrem o veículo, macacos fazem operações delicadas em fiação colorida exposta. Os foguetes que os pingüins carregam são coloridos, como caramelos. O Circo e o parque de diversões fornecem um repertório de imagens a ser explorada. O controle do batmóvel é uma versão em miniatura do próprio batmóvel como um carrinho de parque de diversões, por exemplo.
As cores aparecem no filme. Com Selina Kyle, como um mundo róseo falso, que esconde o fracasso de sua vida, um oásis de boneca em edifícios de pesadelo. E com o Pingüim, como uma versão distorcida do circo, absorvida para uma versão corrompida da infância.
Gotham City não é uma metrópole, é algo acanhado, medieval: um burgo. Seu único espaço é a minúscula praça, a Gotham Square, onde se situa a árvore de Natal. Ao lado, o prédio de Shreck. Dele cai Selina Kyle – seu beco é próximo, portanto. Aos seus pés o botão onde a Princesa do Gelo cai. Ou seja, o edifício onde ocorre o seqüestro é vizihho, portanto. Assim como o balcão onde Batman cai e a Mulher-Gato lhe lambe a face. O prédio-sede da empresa – em cujo térreo está o magazine que, reparado em tempo recorde, abriga o baile de máscaras do final – ocupa uma das laterais da praça que é minúscula, uma versão prática do pátio do Rockefeller Center. Ao longo dessa praça que Alfred está fazendo compras e é abordado por um vendedor de jornal. Onde Selina Kyle, depois, será tratada como refém. Onde a gangue aterroriza a cidade. Os telhados onde acontece a segunda luta entre Batman e a Mulher-Gato são logo acima. O número de cenas, na prática, que ocorrem na praça e no seu raio é absurdo.
Só há mais dois espaços em Gotham City. A escadaria onde acontece a aparição do Pingüim em público, e seu pronunciamento como candidato, fracassado. O Cemitério, que ganha um tratamento à parte.
Há o beco, ou os becos. Onde Selina cai para renascer, próximo à praça. Onde a Mulher-Gato salva uma mulher e faz ouvir o seu rugido, e onde Wayne encontra Miss Kitty. Mas todos são idênticos.
Tanto o lar Cobblepot como a Mansão Wayne e o prédio de Shreck são castelos próprios, onde cada um deles é senhor. Bruce Wayne mora em um castelo distante. Ao contrário do que se entendia nos anos 80, ele não é um psicopata: ele é anti-social. Não quer estar no burgo mundano. Quer distância da hipocrisia da cidade. Está em seu Castelo, que é também uma construção reversa, mergulhando fundo na terra. Mas esse reino subterrâneo do Morcego é isolado. É um Príncipe Sombrio, e não um Dark Knight, como veremos. No primeiro filme, a ênfase em armaduras, algumas bizarras, enfatiza o caráter de Castelo da mansão Wayne. Aqui, o seu guarda-roupas, na Batcaverna, é acedido por uma ponte levadiça, daquelas com grossas correntes.
Shreck mora nas alturas olímpicas. É o verdadeiro Burgomestre de Gotham, o poder por trás do trono. Daquelas alturas expulsa a quem lhe desagrada. Como fez com sua secretária, Selina Kyle.
Ela é jogada do alto do arranha-céu para um beco. Em inglês, é o lugar dos gatos de rua, alley cats. Sua morte e ressurreição ocorrem ali, e lhe arremessam em um Reino próprio. Os becos e telhados, alleys e rooftops. Os infinitos telhados que aparecem no filme Mary Poppins como um reino à parte, e tratado assim no imaginário cinematográfico, o local dos cat burglars, como em Judex (1963) e Nuits Rouges (1974). São os gatos que assistem à sua metamorfose, da janela do apartamento. Quando ela se transforma em uma deles, na célebre cena onde aparece, à distância e atrás da janela, pela primeira vez com seu uniforme, são os gatos que estão no telhado vizinho que lhe reconhecem como igual.
O mundo de Selina Kyle, antes do colapso, era um mundo róseo. Um mundo róseo em um prédio sui generis, com pesadas vigas descomunais de aço cruzando o apartamento – porém pintadas de rosa. Como os móveis e o telefone. Bottons do Smile, aquário com peixinhos coloridos, casa de bonecas, bichos de pelúcia no sofá, espelho cheio de estatuinhas de porcelana. Até o estojo de costura é rosa, como a tesoura. A sua gata, Miss Kitty, recusa-se a encaixar nesse mundo. Ela não é a gata que está na casa de bonecas (existe uma) ou nas estampas mimosas de camisas rosas. Como uma gata real, vive nos telhados. As “escapadelas sexuais”, como observa Selina. Quando ela se torna, ela mesma, uma gata, assume o lado selvagem dessa criatura.
(Os gatos, sua imagem, reaparecem por todo o filme, além do que já mencionamos. O bebê Oswald assassina um gato. A logomarca de Shreck – no topo do prédio, no relógio no térreo, nas vitrines – é a de um gato, misto do Gato Felix com o Gato de Cheshire. São as lonas com gatos estampados que reduzem a velocidade da queda livre de Selina e a salvam.)
Selina cai três vezes. São três mortes, das nove vidas do gato (no imaginário norte-americano). Ela é expulsa das alturas por cada um dos protagonistas masculinos do filme. Por Shreck, de sua torre. Pelo Batman (como uma reação), do topo de um prédio. Pelo Pingüim, das alturas de um guarda-chuva helicóptero.
Oswald Cobblepot, redimido, retorna do Cemitério, pequeno e antigo como os dos burgos medievais europeus, vestido como personagem de velhas histórias. Isso fica mais claro quando ele trabalha, solitário, em plena noite de Natal, como um Ebenezer Scrooge. Escrevendo com um bico de pena, em papéis amarelos, manuscritos. Nessa ocasião do cemitério, e da revelação de sua origem, comenta uma transeunte que Cobblepot é como um sapo que virou príncipe. Outra situação extraída dos contos de fada.
O filme é tributário do Expressionismo alemão, isso é sabido. Mas não custa salientar o tipo do personagem do Pingüim, que alterna essa condição da figura grotesca, monstruosa, quando em seus pijamas, e aquela do imaginário europeu, como o Dr. Rotwang de Metropolis, de Fritz Lang (inspiração para o arranha-céu de Shreck, ademais), o Dr. Caligari do Gabinete do Dr Caligari e o Dr. Mabuse, dos filmes de Lang. O cemitério de Gotham é o de uma cidade medieval, como o Velho Cemitério Judeu de Praga. Sua caminhada pelos esgotos, percebida a partir das sombras, é expressionismo no melhor dos sentidos. O Expressionismo se alimentava e re-elaborava aquelas imagens do fabulário medieval.
Burton é ainda obcecado pelos retalhos de cadáveres. Selina Kyle, em fragmentação figurada após sua “morte”, se reconstrói como uma versão noturna dela mesma, como a Mulher-Gato. O Pingüim também reconstrói fragmentos de documentos rasgados, e anda com pedaços de cadáveres. Voltaremos a essas evocações de Frankenstein adiante.)
Selina Kyle desperta de seu sono de morte, no frio da noite invernal, abandonada no beco, azul como se imagina que um cadáver seja. Desperta com gatos mordendo-lhe os dedos, roçando-lhe os lábios, uma forma sombria do beijo do príncipe que desperta da condição de letargia fatal das princesas de contos-de-fada (ao menos da Bela Adormecida e Branca de Neve). A palidez será um atributo da Mulher-Gato, por sinal.
Mas Selina Kyle é uma versão torcida de outra personagem: a Gata Borralheira (ser “gata” é um acidente da tradução brasileira para a Cinderela). Não há uma fada madrinha; há ela mesma. Não há vara de condão; existe a máquina de costura. É material banal que se transforma, jaqueta, dedais, ganchos, molas. Ela mesma faz o seu vestido, que a transformará. Um vestido para a noite, para poder encontrar o Rei da Noite. É o vestido que lhe habilita a entrar naquele círculo. A chamar a atenção do Batman, e de ser um igual a ele.
Os gatos a ressuscitam. Acompanham-na pela janela, enquanto ela está a se transformar em um deles. Depois, passa a agir como uma gata. (Em verdade, já começa a fazer isso quando retorna ao apartamento, lambuzando-se de leite). Falará ronronando, terá uma cauda (o chicote), engolirá um pássaro, se banhará lambendo seu braço e passando-o na cabeça.
Esse caráter animalesco também se repete no Pingüim, como quando é atraído por Shreck com um peixe fresco ou quando ataca o publicitário, mordendo-lhe o nariz. É um tópico importante, na medida em que rejeita a alcunha de Pingüim, fazendo-se chamar por Oswald até que, rejeitado pela segunda vez, agora pela cidade, assume ser de fato um animal, “de sangue frio” (apesar dos pássaros não serem-no). Batman também era assim no primeiro filme, dormindo de cabeça para baixo.
A roupa da Mulher-Gato merece atenção. Primeiro, na sua elaboração fragmentária. É óbvio que a roupa serve como um indicador do próprio self de Selina, rasgando mais e mais no correr do filme. Mas Burton é fascinado com a idéia mórbida do cadáver composto por retalhos. A criatura de Frankenstein talvez seja sua origem. Edward Mãos-de-Tesoura será uma versão dessa criatura. Como Frankenweenie. Mais intensamente se parece com a Mulher-Gato a personagem Sally, de Nightmare Before Christmas (1993). Retalhos e a palidez absoluta. Ela já está se rasgando depois de “morta”. Transformar-se em Mulher-Gato é reconstituir-se, voltar a ter unidade, que se perde ao longo do filme.
As garras são também algo à parte. Estão no lugar das mãos; o que é suave se torna afiado, perigoso. Assim ocorreu com Edward, com suas mãos de tesoura. O Pingüim igualmente tem deformações nas mãos, que o fazem parecer mais com o pássaro aquático. O irônico está na transmutação de elementos banais cotidianos, de uma feminilidade tradicional e servil, em algo efetivamente perigoso. Ao invés de um sapato de cristal, a Mulher-Gato deixa garras ao longo da história. Uma vez, cravada no torso, na primeira “dança. Outra, fincada no peito, na segunda “dança”, sob o visco. (Não deixa de haver uma espécie de subversão ao ver a Mulher-Gato preocupada com suas unhas...)
Claro, há uma dança real, em meio à elite de Gotham. O último baile é algo às avessas. É nele que Bruce Wayne reconhece com quem esteve dançando pelos telhados. Essa duplicidade de Selina Kyle e da Mulher-Gato não é apenas a dos alter egos da Cinderela: haverá um dueto, dúvidas e fragilidades, e a implosão desse binômio.
Há outra dualidade na personagem, expressa pelo próprio Pingüim: dela como a Bela e a Fera. Isso fica mais claro no contraste com a Princesa do Gelo.
A Princesa do Gelo a personagem opera em dois níveis.
A Princesa do Gelo é a segunda mulher com alguma fala na história. A mulher que é bonita e tratada como objeto por sua beleza. Ela fala pouco; precisa aparecer apenas em trajes mínimos, mesmo no Inverno. E mesmo quando fala, é estúpida: erra as poucas frases de poucas palavras que precisa memorizar. E deseja ser vista como atriz, e não como modelo. Podemos entendê-la dentro da clave das imagens femininas – a modelo e atriz loura e limitada, a secretária menosprezada, a femme fatale –, com suas ironias. Mas nossa clave é a do simbolismo dos contos de fada. Nesta, ela é a princesa, a que se reveste de beleza, nomeada por Gotham City para inaugurar a árvore de Natal. O Gelo é o reino do Pingüim, evidentemente. Ela que é raptada, e que precisa que o herói salve. Ela é quem é primeiro presa, para ser salva por Batman, e, pega novamente, deixada no topo de um prédio. Nesse momento acontece a inversão fundamental na trama: ela morre. Percurso análogo ocorre com Selina Kyle. Ela é seqüestrada por alguém da gangue do Pingüim e salva pelo Batman. No instante seguinte, do alto da torre de Shreck, e lançada, sem nenhum salvamento à vista. Ela morre, por um lado, e não morre, por outro. Ela passar a trazer, dentro de su, os papéis ambíguos de Branca de Neve e Madrasta Má.
A trama é uma miscelânea, já que os três vilões, ou melhor, os três personagens que perturbam a ordem, possuem planos dentro de planos, muitos desviados momentaneamente, quando não à flutuação de humores. No caso, a Mulher-Gato, que volta-se contra o Batman por ser um símbolo do que despreza. Essa tremenda confusão é coerida pela força das imagens – sua beleza – e, suspeito, por suas ressonâncias. Dos muitos desejos interrompidos e que ressurgem, o que mais importa aqui é o de Oswald Cobblepott.
Para o Pingüim, a meta central é a morte dos primogênitos das famílias mais importantes de Gotham. A ascensão por meio de Max é uma maneira de ter acesso aos nomes. Ser Prefeito é uma tentação temporária. Matar Batman, ou ao menos incriminá-lo, é algo menor. O que o move é o papel de Herodes, que por sua vez repete, de modo diabólico, a terrível passagem de Javé no Egito. As crianças são levadas por um trenzinho que é uma versão de parque de diversões da locomotiva e carros que carregam o próprio circo. No Mundo Ártico, seriam enganadas por... brinquedos... para caírem na água. O Pingüim mesmo se confessa como um Flautista de Hamelin. O Pingüim realiza uma entrada triunfal na Maxquerade.... dentro de um patinho. É um aparato de circo. Por esse procedimento, elementos infantis são tornados ameaçadores. A alusão ao Patinho Feio é evidente. Ressoa a lenda de Lohengrin, que vem em um barco em forma de cisne (daí ser chamado originalmente de Cavaleiro do Cisne); mas esta é uma conjectura mais livre. A tessitura de contos de fadas no filme tende a ser mais explícita. Nessa ocasião, o Pingüim trata Chip como um “pequeno príncipe”. A música tocada, então, evoca o Quebra-Nozes de Tchaikovsky.
Quando essa iniciativa falha, o último lance do Pingüim é apelar aos seus súditos, com discurso e tudo. Os pingüins o escutam, e vão servir de portadores de mísseis. A situação inteira não é irreal; é surreal. É um fragmento onírico. Incoerente com a realidade, mas coerente com o filme.
Porque os animais operam como tropas dos personagens, ou pelo menos como seus símbolos. Os pingüins obedecem ao Pingüim, depois de adotá-lo no início. Os gatos ressuscitam e acompanham a transformação de Selina na Mulher-Gato. (Em estampas publicitárias, apareciam atrás dela, como um batalhão). São, por natureza, menos submissos. Morcegos voam a partir do guarda-chuva lançado pelo Pingüim, fazendo a Princesa do Gelo cair, e revoam saindo da Árvore, indicando que Batman seria o responsável. “Traem-no”, mas depois voltam à sua “fidelidade”, atacando o Pingüim, no final, fazendo-no cair no Mundo Ártico.
O fim do filme denuncia o parentesco do filme com os contos de fada, e sua subversão.
O Pingüim faz a Mulher-Gato voar e diz que ela irá para o Céu. Selina Kyle entoa que “meninas boas vão para o Céu”. E, ao final, com máscaras retiradas, fica-lhe a opção de juntar-se com Bruce. Mas ela rejeita esse happy end, onde viveriam felizes para sempre no Castelo – esse é o termo empregado – dos Wayne, como em um conto de fadas.
Mas a situação se descarrilha, segue outro rumo, e conclui-se o filme em aberto.
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