É preciso, mais do que nunca, ressaltar que o gore é uma arte criativa e inteligente por si só.
A discussão sobre a significância do horror na cultura cinematográfica alimenta hoje uma vontade muito grande de categorizar o horror como um “cinema inteligente” com base meramente na simbologia das obras em relação à sociedade, pelas entrelinhas das mensagens de cunho crítico, ou mesmo nas técnicas de composição fotográfica e narrativa que na verdade se podem reconhecer em toda e qualquer obra fílmica, em qualquer gênero. É preciso reestabelecer um contato com o gore que o coloque à altura de sua arte: a ilusão maior ou menor de uma realidade física através de efeitos complexos de maquiagem que criam não só uma reação de horror e repulsa nos espectadores como nos trazem a relexão sobre a decadência irreversível da carne como matéria. Também, notadamente a experiência partilhada da dor, aquela que inexiste em mortes retratadas de forma limpa e rápida mas que é parte da experiência real que nos aguarda a todos junto na morte. A morte cirúrgica e romantizada presente em qualquer outro gênero do cinema não consegue alcançar a completude do horror da carne. Essa limitação só se expandiu no gênero horror e isso se deve ao gore.
The Wizard of Gore (1970)
Teatro
As peças do Grand Guignol no bairro de Pigalle, na França do início de 1900, apresentavam um modelo de performances curtas laureadas por comentários sociais ao estilo do teatro de marionetes, como no clássico Punch & Judy. O roteiro geral em algumas dessas apresentações servia meramente para costurar momentos onde a técnica de efeitos especiais para a criação de mutilações, desmembramentos, estripamentos e degolas eram o foco principal. A sangueira era tanta que Paula Maxa, atriz do Guignol, chegou a ser chamada de “a mulher mais assassinada do mundo”. Os efeitos no púlico eram devastantes: pessoas desmaiavam, vomitavam. Chegou até a se formatar um dia propício ao flerte, pois muitas mulheres casadas visitavam o teatro para atirar-se ao colo alheio fingindo passar mal.
O Grand Guignol fazia parte de um grande movimento naturalista nas artes. O naturalismo, termo formulado por Emile Zola, preconizava a busca por uma expressão que criasse a ilusão de realidade no receptor. Peças extremamente violentas já eram comuns no teatro da renascença na Inglaterra, entre os séculos XVI e XVII, tendo como exemplar o Tito Andrônico de Shakespeare, assim como séculos antes houveram muitos exemplos aterradores na tragédia grega (Édipo Rei, com a visão nauseante de seus olhos furados descrita em detalhes pelo coro) - no entanto, com o Guignol o foco do espetáculo passou a girar em torno dos efeitos em si, da representação gráfica da morte e dos ferimentos físicos como forma de criar a ilusão de realidade. Relegado o plot a um plano coadjuvante em detrimento dos efeitos, nascia uma nova expressão.
Cinema
Apesar da exposição gráfica de ferimentos físicos acontecer, volta e meia, nos primórdios do cinema - com pouquíssimo tempo de tela e pouca exposição de sangue - não havia nada que se assemelhasse cinematograficamente ao Guignol antes de Herschell Gordon Lewis, pioneiro do cinema Gore, que estabeleceu parâmetros semelhantes em seus filmes no início dos anos 60. Das cabeças decepadas em “Intolerance” de D. W. Griffith ao corte do olho em “Un Chien Andalou” de Buñuel (ou à cena do olho do gato em Maniac, de 1934) , são vários os momentos pontuais que marcam a presença do gore no cinema antes de H. G. Lewis. Mas talvez sejam os experimentos curtos feitos por Alfred Clark para a companhia de Thomas Edison em 1985 as representações mais importantes desse primórdio.
Blood Feast (1972)
Em poucos segundos de stop motion, Alfred Clark apresentou Maria (rainha da Escócia), sendo executada, assim como uma cena de escalpelamento indígena. Esses microfilmes eram apenas experimentos, mostravam as possibilidades futuras para a imagem sequencial, mas já apelavam para o interesse específico na representação gráfica da morte em cinematografia e funcionavam em sua plenitude nesse contexto. Clark provavelmente pensava em um público que vinha adquirindo gradualmente o interesse em fotografias de morte, visto que os tablóides já exploravam insistentemente o assassinato como entretenimento (um estopim foram as representações ilustrativas dos cadáveres das vítimas de Jack, o Estripador, em 1888). A própria literatura já via há tempos um florescer gótico repleto de descrições putrefatas, com direito a Charles Baudelaire retratando poéticamente o cadáver de um cão em As Flores do Mal (1857). No entanto esse interesse só iria ser realizado cinematograficamente com a mesma plenitude - com grande tempo de tela focado no gore e sangue à vontade - em Blood Feast (1963), primeira obra narrativa no cinema que pode ser denominada como um filme de horror nessa subcategoria O método foi executado novamente pelo diretor em Two Thousand Maniacs (1964), garantindo a Herschell Gordon Lewis seu apelido de “Padrinho do Gore”.
Two Thousand Maniacs (1964)
Splatter
A trilogia dos mortos de George Romero (1968 / 1978 / 1985) ajudou bastante a estabelecer o subgênero, muito especificamente seu segundo filme “Dawn of Dead”, no qual se utilizaram 20 galões de sangue falso (aproximadamente 75 litros), número batia recordes na época. Em uma entrevista para a Rolling Stone em Março de 1978 George disse que as pessoas se referiam a seus filmes como “splatter movies” (por conta da quantidade de sangue que jorrava) mas que o que ele buscava era recriar o clima das aventuras de velhos quadrinhos de ação e cowboys. Desde suas declarações, o termo “splatter” passou a ser também um termo muito utilizado ao longo da década de 1980 e posteriormente, sendo um impasse comum ou até tornando-se um termo só (splatter gore).
Dawn of Dead (1978)
Devido à qualidade dos efeitos de violência gráfica em algumas obras, alguns chegam a incluir diretores como Argento e Fulci como realizadores da subcategoria “splatter italiano”, quando na verdade seus filmes perambulam por múltiplos gêneros, em grande parte giallo e horror. Notadamente, Fulci começa nos western spagghettis e perpassa esses outros gêneros adentrando gradualmente um experimentalismo maravilhoso. Nesse aspecto podemos ressaltar a pérola gore chamada “Un Gatto nel Cervello” (1990), apoiada principalmente nos efeitos gráficos de morte, mutilação e exposição de órgãos internos, que costuram a obra de forma onírica.
Un Gatto nel Cervello (1990)
Por sua vez, é na Itália realmente que surge - antes mesmo de H. G. Lewis - a série de documentários exploitation Mondo Cane (1962), repletos de cenas reais de morte. Apesar de considerar os filmes da série Mondo como um fator importante para uma maior exploração do gore nos filmes de ficção, eles não se enquadram nessa categoria e são precursores de um outro tipo de produção que desencadearia, na década de 1980, a famigerada série “Faces da Morte” - tabu da era VHS.
FX
Ainda na industria italiana, é incrivelmente marcante para o cinema de horror o surgimento de Cannibal Holocaust (1980) de Ruggero Deodato, em mais de um aspecto. No que tange ao gore, os efeitos de maquiagem atingem o nível de simulação buscado pelos naturalistas do Grand Guignol. O efeito é potencializado pela mistura de cenas reais da morte de animais e uma narrativa convincente de found footage, considerando-se a obra também como um avô desse subgênero. O resultado foi tão gratificante que é bastante difundido o fato do diretor ter sido convocado à justiça para comprovar que os atores estavam vivos.
Cannibal Holocaust (1980)
Foi nesse clima que a década viu surgir a categoria de premiação para “Maquiagem e Penteados” no Oscar em 1983, sendo levada por Rick Baker pelos efeitos em “An American Werewolf in London” e sendo, de forma recorrente ao longo dos anos, uma estatueta entregue a maquiadores de filmes de horror/sci-fi ou transversais a esses gêneros como The Fly (1986), Beetlejuice (1988), Bram Stoker’s Dracula (1992), Ed Wood (1994), Men In Black (1997) e El Laberinto del Fauno (2006). É de se considerar que o Oscar é uma premiação extremamente limitada, moralista e focada em uma parcela da indústria cinematográfica americana. Caso se tratasse de uma premiação global e de maior amplitude, essa premiação específica provavelmente envolveria uma série de produções de splatter/gore que surgiram de forma muito prolífica durante a década de 1980 e 1990.
Hellraiser (1987)
Vale ressaltar que o body horror e toda a carga de putrefações da literatura splatterpunk dos anos 80 - cujo grande representante foi Clive Barker, inclusive nas telas com seu Hellraiser (1987) - esteve presente para muito além dos filmes de David Cronenberg e talvez se possa dizer que ao longo dessa fase o cinema teve o seu horror mais físico, havendo um resultado direto das experiências extremas dos anos 70 no cinema fantástico. A respeito de Pinhead e seus cenobitas, cabe acrescentar a característica sadomasoquista na representação da dor como o último dos prazeres, e reconhecer que as torturas que “despedaçam a alma” não são tão imateriais quanto se imagina.
É notável que, ao longo dessa década, o investimento em produções que envolviam efeitos práticos de morte era alto e não haviam muitas restrições ou censuras para produzir tanto quanto haviam para exibir em alguns países. A febre dos slashers simbolizada nas bilheterias e na longevidade da franquia Sexta-feira 13 comprovam que, naqueles tempos, baldes de sangue falso e mortes criativas eram a bola da vez no mercado cinematográfico mainstream, estimulando uma série de produtoras menores e realizadores independentes a tentar alcançar o público das locadoras de VHS.
Sexta-feira 13 - Parte 4 (1984)
(continua...)