Não conheço profundamente o personagem.
Lembro vagamente de, quando criança, ter assistido King Kong vs. Godzilla (1962), de Ishirô Honda. De ter assistido um impressionante filme japonês sobre a criatura – lembro muito bem das cenas – na casa de amigos nisseis... filme que demorei para identificar qual era: Godzilla, de 1985, dirigido por R. J. Kizer e Koji Hashimoto. Lembro de ver, ainda, Godzilla vs. Megalon (1973), de Jun Fukuda, e achei, criança, um filme tosco. Era fã do desenho animado norte-americano da Hanna-Barbera (1978-80), e me emocionava toda vez que o gigante saía da água.
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Muito tardiamente vi a versão de Roland Emmerich, de 1998. Após ter ouvido falar muito mal, não achei o filme detestável como disseram.
Tardiamente assisti o original de 1954, de Ishirô Honda, um pouco antes de ver a nova versão, de 2014, de Gareth Edwards. E vi Shin Godzilla, de Hideaki Anno (2016).
Estas são minhas escassas credenciais.
Diante disso queria fazer apenas alguns comentários sobre o personagem, a partir de alguns de seus filmes, em especial do primeiro, onde se destacam de entrada a fotografia e os efeitos sonoros, para mim inesperados.
Mas vou aos sentidos múltiplos, do filme e do personagem, que é onde reside sua força.
Todos falam: Godzilla é a bomba atômica. E é mesmo.
Mas não é só isso. É mais ambivalente que isso, e daí está o seu interesse.
Ele é a bomba pela destruição absoluta de Tóquio. A terra arrasada é a das cidades atacadas por bombas incendiárias e atômicas na Segunda Guerra.
É, deu um modo mais amplo, os efeitos nocivos da bomba. Basta lembrar do sumiço sucessivo de barcos pesqueiros, no começo do filme. O episódio de um barco pesqueiro atingido pela contaminação de testes nucleares, no Pacífico, foi o mote do roteirista, e estava na cabeça dos japoneses – o envenenamento dos pescadores do Daigo Fukuryu Maru, em 1954, pela radiação dos testes nucleares no atol Bikini.
Ainda porque Godzilla é radioativo, e seu fogo, também. Então, as crianças sobreviventes, em hospitais para desabrigados e feridos, estão contaminadas.
Mas o monstro é mais do que isso.
É a pré-história real – uma criatura, um dinossauro, de estratos profundos da idade geológica da Terra. Se ele foi desperto ou já estava, veremos adiante. As fossas abissais servem como uma estratigrafia real, “exposta”, daquelas camadas do planeta. Por meio delas que um longínquo sobrevivente de outras épocas pôde ascender para o mundo moderno.
É a pré-história mítica: no filme, ele é um monstro lendário para os pescadores de uma ilha perdida... e, no imaginário, ele é um dragão, evidentemente.
É uma criatura marítima: um cientista, no filme, estima que ele venha do período em que os répteis estavam saindo da água. Ele anda sob as águas, e emerge delas, na baía de Tóquio.
Apesar disso tudo, consegue ser ainda ctônico. Não só pelo seu fogo radioativo. Sua primeira manifestação se dá, e se confunde, com a de um vulcão submerso. Ele é o alfa e o ômega do Japão: a origem física das ilhas, e a ameaça constante que paira sobre seu fim.
Ele traz consigo eras geológicas. Na sua pegada, um trilobita se revela.
Ademais, é um subproduto dos testes nucleares. Diz-se que ele foi desperto pelos testes nucleares na Polinésia. Mas os nativos daquela ilha dão a entender que, periodicamente, ele desperta, comes os peixes e requer um sacrifício humano, que há muito se perdeu, restando apenas as danças de exorcismo. Diz-se ainda que ele sobreviveu à radiação dos testes. Afirma-se, ainda (há tantos “aindas”...), que seu habitat nas profundezas foi destruído por tais testes.
Essa ambigüidade não é um problema. Pelo contrário.
Godzilla é por fim morto por uma arma, o Destruidor de Oxigênio, desenvolvido acidentalmente por um cientista que, cheio de medos, não o revela a ninguém. E quando se vê obrigado a usá-lo, para não brindar o mundo com outra arma de destruição em massa, elimina os papéis, usa o único exemplar que tem pessoalmente, no oceano, contra o monstro, e se suicida no ato de exterminá-lo. Claro, o Destruidor de Oxigênio também é uma imagem da bomba atômica. E talvez de maneira mais intensa, porque todos os dilemas aí se apresentam: uma tecnologia letal desenvolvida como uma pesquisa com outros fins; uma tecnologia que, uma vez posta nas mãos dos governos, fatalmente será empregada como uma arma; e o que o seu inventor deve fazer a respeito disso.
Essa riqueza conceitual, essa matriz aberta, permite várias interpretações.
No filme americano de 2014, opta-se por uma organização em escalas que me fascinou. Gosto da idéia de que a visão se deve dar na escala humana, deformando assim a compreensão daquelas paleocriaturas, dada sua enormidade. Não, não gosto da câmera tremida, e de tudo ser escuro. Fica melhor no escuro o gradual processo de preparo do hálito plasmático de Godzilla. E entendo a decisão narrativa de apenas mostrá-lo à luz do dia, pleno, por inteiro, no final.
Aqui queria apontar algo: a indicação de uma mega-paleo-fauna, de uma época remota em que “a Terra seria radioativa”, e a radiação seria um recurso de ataque normal (o hálito concentrado, o plasma radioativo de Godzilla) ao mesmo tempo em que um alimento (para os Mutos). Eles conseguem estabelecer uma espécie de cenário em que, de um só golpe, o homem se vê jogado à insignificância, espectador passivo da luta pela posse da terra por superpredadores no sentido mais literal da palavra. (Sim, o pulso eletromagnético do Muto como uma arma é um recurso conveniente de roteiro, para desarmar os humanos... apenas inverossímil no seu contexto natural: não faz sentido como arma para seres vivos, não?).
Em Shin Godzilla, apesar de não simpatizar com o filme por inteiro, há o intento de relacionar o monstro com outras coisas. Eu destacaria pelo menos duas.
A primeira, a história individual da criatura repetir o processo evolutivo das espécies, e apontando para a emergência de humanóides a partir de seu corpo. A criatura, mutando e evoluindo velozmente, sintetiza/ repete/ resume a trajetória da vida no planeta.
A segunda é seu aspecto, na forma final, como uma espécie de magma que está se solidificando em rochas ásperas, mal e mal solidificadas, ainda afiadas. Os esporões do dorso parecem formações cristalinas, algo que soa “natural” para uma ilha que emergiu, ela mesma, no Cinturão de Fogo do Pacífico.
E no novo filme que se anuncia parece que querem uma outra evocação: com os Titãs. Com seres que, atuando em outra escala, seriam um misto de monstros e divindades, muito acima dos seres humanos, e que decidiram com o próprio destino do planeta. Aqui Titãs têm mais a ver com o que evocamos ao som da palavra do que com seu sentido original na mitologia grega... os Titãs correspondiam à geração anterior aos deuses olímpicos, não a monstros... e monstros havia, como os hecatônquiros ou Tífon... No caso do novo filme, os dois sentidos se fundem, um uma ambivalência que não é um problema.
Muito pelo contrário.
Terceira edição do Cine Horror movimenta a Sala Walter da Silveira, de 19 a 27 de outubro, com programação intensa de filmes nacionais e internacionais e homenagens aos 200 anos de Frankenstein.