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CORINGAS DEMAIS!

Por: Daniel J. Mellado Paz

Vou entrar nessa grande conversa sobre os Coringas, a partir desse último filme do Coringa (Joker, 2019).


De entrada: o melhor Coringa como trabalho de ator é o de Joaquin Phoenix.


E o motivo é óbvio: porque lhe pediram muito mais.


Tinha de ser um personagem que sustentasse duas horas de filme, com quase todo o tempo de tela.


Tinha, ainda, de evoluir, transformar-se... ou fazer emergir uma personalidade assassina de dentro de um bom homem, ou de um homem ingênuo, ou de um homem inofensivo.


Tinha de fazê-lo por meio da evolução das risadas... de toda a comunicação não-verbal, nos esgares, trejeitos de voz, na movimentação, naquela dança muito pessoal que desenvolvia na solidão.


Tinha de ser imprevisível, como a maioria dos seus assassinatos, e, ainda assim, ser coerente, verossímil, estar dentro de uma cadeia lógica. Uma delas é o sucessivo romper de amarras com o que está ao seu redor, com cada contato humano dele, incluindo as mortes sugeridas (vide as pegadas ensanguentadas) e as evidentes embora não ditas (a vizinha). A “violência” do filme não é tanto a da ação, do sangue, ou de vísceras, mas o seu conteúdo, a intensidade do que ocorre, a brutalidade da simples idéia do assassinato.


Tinha, ademais de tudo, ser ambivalente o suficiente para o espectador sentir pena e medo... de ver nele um monstro moral e uma vítima... de poder ter simpatia por ele e rejeitá-lo, tudo ao mesmo tempo.


Dos outros não se exigiu tanto. Ou melhor, pediram-se Coringas que se adaptassem a propostas diferentes.


O Coringa de Heath Ledger (The Dark Knight, 2008) é, de longe, o mais ameaçador.



Porque assim Christopher Nolan havia pensado. Um Coringa que ninguém soubesse a origem, e ninguém jamais saberá. Que veio do nada – era um preso em Arkham, cujo passado era desconhecido – e que foi para o nada – o ator faleceu, e não fugiu de Blackgate (se é que estava lá), ou reapareceu na Gotham devastada, quando Bane explodiu suas portas.


Esse Coringa deveria ser um mestre dos estratagemas, e até de modo absurdamente inverossímil, já que seus planos dependiam que os loucos (justo os loucos!) se comportassem de acordo com seu script. Deveria ser alguém absolutamente imprevisível – achei incrível, por exemplo, o “sumiço” do lápis, na reunião dos chefes de gangues de Gotham.


Deveria ser um agente do caos, uma força da natureza, etc, etc, etc, como todo mundo repete... até porque Nolan nos enfiou isso goela abaixo, de modo didático, com diálogos bobos de tão explícitos, sem nos deixar com o gosto de sermos inteligentes por deduzirmos o óbvio. (Do tipo “eu sou um agente do caos”, entre outras).


O Coringa de Cesar Romero é o mais engraçado.



Porque essa era a tônica do seriado, e do filme, de 1966. Era um Coringa engraçado, que pegou o velho galã mexicano e o fez se comportar de modo histriônico, saindo de sua zona de conforto (como revelado em uma curiosa adaptação dos bastidores do seriado, chamado Return to the Batcave: the misadventures of Adam and Burt, 2003). Lá talvez tenha sido a primeira menção a um ator “se transformar”, se transfigurar, já no próprio camarim, no Coringa.


(Ou seja, existe um ator do ator... há um “Coringa” que todos esquecem, que interpreta César Romero interpretando o Coringa, o ator de nome Bud Watson).


Esse Coringa tinha uma competição severa: todos os vilões do seriado, e que se reuniam no filme (neste caso eram quatro: ele mesmo, o Charada, a Mulher-Gato, o Pinguim) interagiam, cada qual com sua movimentação corporal própria, com seus trejeitos.


A Mulher-Gato era Lee Meriwether, que emulava mais uma gata. Julie Newmar, a Mulher-Gato do seriado corrente, vinda do balé, praticamente criara uma dança própria, muito elegante... e tremendamente sensual, sem ser vulgar. O Charada de Frank Gorshin era uma figura muito interessante, que tinha um riso louco próprio (e há uma cena onde ambos, Coringa e Charada, se põem a rir, no submarino do Pingüim), e uma movimentação que nitidamente inspirou a versão de Jim Carrey, ele mesmo um análogo de Gorshin em vários aspectos, como nas maneiras muito corporais, físicas, plásticas até, com que ambos imitavam outros atores. O Pingüim de Burgess Meredith era outro show de linguagem corporal.


Nesse meio movia-se Cesar Romero, com muita dignidade.


Ele assumia o manto do palhaço verdadeiramente, contracenando com beldades, já que, no seriado, os policiais e a Dupla Dinâmica eram a quintessência do aborrecido, do chato, enquanto os vilões estavam sempre em esconderijos coloridos, e com molls, ajudantes, maravilhosas, e mais uns capangas (ou lacaios, hoje, “minions”) sem personalidade e sem sucesso, funcionando como sacos de pancada dos heróis mascarados.


Para mim, porém, o Coringa mais Coringa foi o de Jack Nicholson (Batman, 1989).



Antes de mais nada, não é um caso de memória afetiva. Quando vi o filme, no cinema, ainda um menino, não entendi nada. Eu já lia o Batman. Já tinha lido A Piada Mortal (1988), de Alan Moore, lançada no Brasil no mesmo ano, e O Retorno do Cavaleiro das Trevas (1986), de Frank Miller. Mas aquele filme era... estranho.


Era estranho, hoje sei, não porque era de Tim Burton, mas porque era uma soma de coisas diferentes, de autores diferentes. Burton não tinha carta branca total para ser Burton e nem sabia se queria ser Burton totalmente, Nicholson tinha um peso muito forte, o merchandising estava ali explorando suas possibilidades, a Warner queria algo sombrio e para crianças... havia muitas mãos no meio. O segundo, Batman o Retorno (1992) era mais coeso, tinha uma estética unitária, daquele “gótico” gélido, azul, e de listras, um art-decó deformado, de Burton. O primeiro, não. Era uma mescla. Tinha coisas que beiravam o gore, algo meio Sam Raimi. A Gotham City tinha uma estética mais industrial, mais “suja”. (Ambos os filmes são tributários do Expressionismo alemão... mas este era mais fabril, e menos lírico). Tinha Prince.


Mas era estranho.


Foi engraçado e estranho ver o Coringa puxando uma pistola com um cano infinitamente longo e derrubando o avião do Batman. (Cena que, ademais, me parece homenageada n´O Cavaleiro das Trevas de Nolan). Foi engraçado e estranho ver o desfile carnavalesco, com o Coringa soltando dinheiro... o dólar-coringa, com o rosto dele (isso também tem na série de 1966), e tentando matar todos os foliões...


O filme foi muito criticado na época porque era... diferente. É o famoso “este não é o Batman que conheço”. E não era mesmo. É outro. E é mais uma versão do mesmo, que o enriquece.


Falo que não é memória afetiva porque eu comecei não gostando do filme. Ou, não sabendo bem o que eu sentia. E, com o tempo, fui revendo, e gostando mais e mais.


Sei que falam que Nicholson interpreta a Jack Nicholson. Têm toda razão. Há trabalho de ator ali, claro, mas ele é pequeno. Jack Nicholson foi contratado por ser o Coringa já, em potencial. Porque o Coringa aparece já n´O Iluminado, e n´Um Estranho no Ninho.


Mas o Coringa de Jack Nicholson, além de estar à perfeição no que o filme se propõe, é o mais... cartunesco.


Ele é engraçado.


Ele é mortal.


É engraçado por suas piadas... que são fortes, que são sádicas, que são maravilhosamente cortantes.


É engraçado pelos gadgets, que encaixam naquela lógica, até competindo com os brinquedos do Batman, que são “melhores” que os dele.


Até o lado do “gangster” está bom, uma faceta que já existiu no personagem, em tempos idos.


Quero, ainda, mencionar outros Coringas.


Não o de Jared Leto, porque não vi o filme Esquadrão Suicida (2016). Achei tudo tão ruim, já nos trailers, que resolvi poupar meu dinheiro.


E tem Mark Hamill, que se reinventou dublando... interpretando... o Coringa no seriado do Batman conhecido como BTAS – Batman the Animated Series (1992-95), e que seguiu interpretando-o em outras adaptações. O desafio é outro: pela voz, caracterizar todo o personagem, em um trabalho coletivo com os animadores, diretor, etc. Sua risada é a melhor que conheço. Ele a explora em toda sua potencialidade. Talvez justamente por ser esse o espaço que tem, a escassa margem onde pode manobrar.



Mesmo o Coringa do desenho animado The Batman (2004-8) não é de todo ruim. A concepção gráfica do personagem é um horror, meio simiesco. Não a interpretação de Kevin Michael Richardson, que conseguiu alternar uma voz cômica, rápida, com outra mortal...


Como muitas outras animações do Batman, sofre por contraste. Os bons desenhos são tão bons, que as adaptações razoáveis soam como ruins.


Há uma animação que acredito injustiçada, ao mesmo nível de BTAS. Trata-se de Batman: os Bravos e Destemidos (2008-11), cuja proposta é ousada: pegar todos os elementos descartados da longa história do Batman (a Batgirl de Yvonne Craig, vilões menos importantes, o Batmite, interagindo com a Mulher-Maravilha de Lynda Carter, e outros, a fase mais colorida do herói nos quadrinhos dos 50) e dar uma repaginada. O resultado é incrível. Batman fica em um tom farsesco e, ao mesmo tempo, convincente, quando não lírico. Tudo funciona bem. Calcado em Dick Sprang, o trabalho de voz de Jeff Bennett como Coringa está ótimo. E a estética cartunesca, dos anos 50, não deve enganar: este Coringa assassina com desenvoltura. Mais até do que o de Hamill.



Queria resgatar o trabalho de Cameron Monaghan, no seriado Gotham (2014-9). O seriado foi ruim. Degringolou em vários lugares. Mas tinha uma fotografia bonita – Gotham era incrível, a cidade. E boas idéias, com algumas boas cenas. Monaghan era um personagem que podia ser ou não ser o Coringa, e essa ambivalência perpassou o filme. Ele morreu... foi ressuscitado de maneira tosca, homenageando um dos Coringas mais recentes dos quadrinhos, que têm uma máscara feita de pele humana... (e que acho realmente ruim). Morreu de novo, e inventaram um irmão-gêmeo que era o oposto, e que pirou, transformando-se em outro proto-Coringa, diferente. Esta proposta era ruim, mas o ator trabalhou bem criando, literalmente, quatro personalidades distintas: Jerome Valeska (o primeiro proto-Coringa) e sua faceta mais declaradamente louca (antes e depois do rosto mutilado)... e Jeremiah Valeska, o gêmeo, antes e já como “Coringa” (incluindo uma quinta versão, deste mais envelhecido, no futuro, com o rosto corroído por ácido).



Mas o que eu quero resgatar? Que o Jerome Valeska ensandecido mesclava coisas de outros atores. Tinha momentos, meio de fastio, de enfado, que eram calcados em Nicholson. Risadas que eram Mark Hamill. Momentos de suspensão, de uma respiração pesada, de algo mais centrado na boca, na mandíbula, que eram inspirados em Ledger. E todos funcionavam bem na personalidade dele. Um dos ótimos momentos da série é quando Valeska faz uma roleta-russa com um outro louco, para provar quem é que manda.


Diante de um histórico tão sólido de interpretações do personagem, o trabalho de cada um deles, e agora o do último, Joaquin Phoenix, ficam ainda mais interessantes.


Ficou claro que para mim o Coringa mais Coringa é o de Nicholson.


Mas para encerrar de modo cômico e paradoxal, posso fazer outra afirmação.


Dizer que o melhor Coringa é... o Batman.


Digo, Michael Keaton…


Ele aparece com outro nome no filme chamado Os Fantasmas Se Divertem (1988), sob a alcunha de Betelgueuse, ou, para falar mais fácil, Beetlejuice. Mas é uma espécie de Coringa-zumbi, que retorna após a morte, e pratica suas arlequinadas macabras como um fantasma. Seria digno do Coringa.



E permitiria ser, até onde sei, o único ator que interpretou ao Batman e ao Coringa.


O que não é pouco.

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| 2138 | 14/10/2019
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