Entramos em 2020 e com isso vem a responsabilidade muitas vezes ingrata de avaliar, sempre com aquele olhar pessoal, quais obras se sobressairam no cinema de horror em 2019. É preciso sempre perpassar diversos âmbitos desse amplo universo que é o cinema fantástico, sem medo de pesar a mão ao deixar de lado queridinhos e muitas vezes assistindo aquilo que poucos tem real interesse em ver. E é preciso ser justo. Às vezes descobrimos tesouros, em outras ocasiões desperdiçamos uma soma de tempo que não volta. E não é o valor de produção, o montante de pixels 3D exibidos.e muito menos o marketing massivo e números de bilheteria que fazem os olhos brilhar. Tampouco o esnobismo intelectualóide do “cinema de fotógrafo”, capaz de ser vazio e entediante ao tentar emular a relevância dos artistas de outras décadas. É preciso encontrar, principalmente, a sinceridade do filme; avaliar cada obra dentro de seu ritmo e seus objetivos próprios. Analisar cada um em sua caixa. E ser capaz de fazer uma lista que coloque o holofote sobre cada merecedor, dentro de suas respectivas caixas. Talvez dez seja um número pequeno para isso - às vezes muito grande. O fato é que o resultado nunca satisfaz, porque nunca é completamente justo, nada além de uma perspectiva pessoal. Mas entramos em 2020 e estes foram, sob minha análise, os destaques do horror em 2019:
1- NIGHTINGALE (dir. Jennifer Kent)
Apesar de se tratar de um drama histórico sentimental, o filme é dono das cenas de violência física e psicológica mais difíceis de assistir do ano, dentre a lista de lançamentos do grande circuito. Ainda que presente como elemento, o horror permeia em suas multiplas nuances toda a obra. Com qualidade técnica, bom roteiro e ótimas atuações, apresenta um discurso social menos bagunçado que o outro drama de qualidade cultuado pelos fãs de horror neste ano, o sul-coreano Parasite (Dir. Bong Joon-Ho). Este compete fácil pela primeira posição mas fica alguns passos atrás de abraçar o gênero em comparação a Nightingale, já que funciona muito mais como um drama moderno ou uma comédia ácida e contém menos elementos que o enquadrem aqui de fato.
2- IN FABRIC (dir. Peter Strickland)
A comédia sobre um vestido assassino se apresenta com uma linguagem dinâmica permeada de simbolismo em sons e imagem, refletindo a completude da linguagem cinematográfica sem medo de parecer hermético ou confuso. O horror social da década se reflete com alternativas cômicas bem mais criativas neste e em Greener Grass (Dir. Jocelyn DeBoer / Dawn Luebbe) do que no aguardado e bagunçado Us (Dir. Jordan Peele). Em um comparativo, o aparentemente idiota Odd Family: Zombie For Sale (Gimyohan Gajok, Dir. Lee Min-Jae) se deixa entrever como uma obra inteligente, enquanto o aparentemente inteligente Us em diversos momentos soa idiota. Lógicamente essa contrariedade acaba funcionando melhor pra um filme do que pro outro. Se existe algo que se sobressai em Us é a fantástica trilha de Michael Abels, uma das melhores do ano. As sementes de Lynch se observam tanto em In Fabric quanto em Greener Grass, e ainda mais em Knives and Skin (Dir. Jennifer Reeder), comédia declaradamente inspirada em Twin Peaks que tem uma primeira hora interessantíssima mas acaba mergulhando fundo em pelo menos 50 minutos de dramaticidade adolescente piegas e discurso ginocêntrico repetitivo. Neste até os drinks precisam estar servidos em absorventes internos e bilhetes serem entregues em muco vaginal, o que seria interessante o bastante se não voltasse à mesma mensagem o tempo inteiro, considerando seu espectador ou inapto ou intolerante o bastante para necessitar essa repetitividade. Em breve conclusão deste tópico: se In Fabric elencasse cenas mais fortes de violência, provavelmente seria o filme a estar encabeçando esta lista.
3- TUMBBAD (dir. Rahi Anil Barve)
Provavelmente um dos melhores representantes do cinema fantástico na completude do termo desde as melhores obras de Guillermo del Toro, esta superprodução indiana é um entretenimento que brilha aos olhos e apresenta um conto de ambição permeado dos elementos culturais de uma ásia muito diferente do eixo cinematográfico de horror da dobradinha Japão/Coréia do Sul. A índia nos presenteou também neste ano com Jalikattu (Dir. Lijo Jose Pellisery), que teoriza a humanidade aos moldes de um Senhor das Moscas a partir da fuga de um búfalo em uma vila. É o cinema indiano muito além de Bollywood. Em termos de fantasia gótica, o americano We Have Always Lived in The Castle (Dir. Stacie Passon), adaptação do livro de Shirley Jackson (De The Haunting of Hill House) é um filme que busca chamar pouco a atenção e que, no entanto, é bem produzido, com boa estética e bom ritmo, além de contar com a atuação sempre relevante de Crispin Glover. A obra lembra bastante o ritmo de adaptações com pouco frisson de público mas de reconhecida qualidade como The Butcher Boy (1997 / Dir. Neil Jordan).
4- LITTLE JOE (dir. Jessica Hausner)
Possuidor de um argumento ótimo, o horror sobre uma perigosa flor criada em laboratório se desenvolve sem apelar para finais fáceis e nunca perde a dualidade misteriosa, que torna os diálogos entre os personagens e as sequências cada vez mais plenas de interpretações. Isso só argumenta a seu favor, ao que se soma um belo minimalismo sistemático em sua cinematografia e design. Horror e tecnologia permeiam também os ótimos entretenimentos Child’s Play (Dir. Lars Klevberg) e Door Lock (Doeorak, Dir. Kwon Lee). O primeiro é uma releitura de Chucky onde o mesmo se interliga via wifi com basicamente qualquer aparelho e aprende comportamentos através de inteligência artificial. A retomada conta com boas sequências no dinâmico texto do roteirista de games Tyler Burton Smith, além de bom humor, uma ótima trilha de Bear McCreary (que também acertou com a trilha de Godzilla: King of Monsters) e um Mark Hammil inspirado na dublagem do boneco. O segundo é mais uma pérola sul-coreana que se desenvolve a partir das brechas em fechaduras eletrônicas, dessas que possuem senha ou abrem com cartões de acesso. É o tipo de filme cuja principal característica é, basicamente, ser um suspense sul-coreano e possuir todas as boas qualidades inerentes a esse fator – dizer mais pode entregar as diversas surpresas e plot-twists que o tornam tão divertido.
5- MIDSOMMAR (dir. Ari Aster)
O clichê dos jovens que viajam em grupo para morrer um a um nas mãos de um vilarejo de cultura peculiar se reveste aqui de simbolismos de fácil associação e de uma estética diferenciada. É mais do mesmo, mas ao mesmo tempo não é; é horror clichê e é cinema de arte; é longo demais e cheio de buracos no roteiro, mas é lindamente dividido em estéticas que representam o sentimento da protagonista, da derrocada ao engrandecimento pessoal. Principalmente, Ari Aster endossa o coro na retomada do horror folk que já se previa após o lançamento de The VVitch (Dir. Robert Eggers). Ainda neste ano temos nessa categoria belos exemplares em Gwen (Dir. William McGregor), no extremamente atrasado lançamento em streaming do alemão Hagazussa (Dir. Lukas Feigelfeld) e na coletânea de curta-metragens The Field Guide to Evil (Vários diretores). A relevância deste ultimo está em apresentar o trabalho de diretores do gênero horror em países da europa oriental e ásia ocidental cuja produção cinematográfica possui menor visibilidade global, em curtas que retratam especificamente os mitos de sua cultura local. Nem todos completamente eficientes, os curtas são extremamente interessantes e o engrandecimento pessoal ao assisti-los é revigorante.
6- DEPRAVED (dir. Larry Fessenden)
Seria de todo um desperdício lançar mais um Frankenstein genérico no mercado, não fosse o nível de inspiração que Larry Fessenden alcançou com seu roteiro sobre um homem que tem sua vida interrompida para se tornar o espécime de laboratório de um ex-soldado do iraque em um loft do Brooklyn. Todas as amarras de um bom roteiro estão ali, e as cenas projetadas com a carga emocional de Alex Breaux nos fazem torcer pelo personagem e sofrer com sua situação. Com este filme, Fessenden se posiciona como um nome peculiar do cinema independente dos Estados Unidos ao lado do cada vez mais proeminente diretor de Bliss (Dir. Joe Begos), que realizou sua própria modernização de um monstro clássico em um conto lisérgico de vampirismo recheado de boa música. Juntamente com a inventividade de Daniel Isn’t Real (Dir. Adam Egypt Mortimer), percebe-se que neste final de década os caminhos do cinema independente dos Estados Unidos parecem vislumbrar o surgimento de novos e melhores heróis.
7- BORDER (dir. Ali Abbasi)
Quando se trata de reinventar monstros, John Ajvide Lindqvist (de Lat den Rätte Komma In) é o grande especialista em trazê-los dos reinos da fantasia para as nossas leis da física, civilização e urbe. Baseado no conto do autor intitulado “Gräns”, Ali Abbassi traduz para as telas a bizarra mas cativante história de um(a) personagem que se descobre inserida em meio a uma espécie muito diferente da sua. É a velha história do patinho feio elevada ao tom mais adulto possível e com as pinceladas mais cruas de realismo. O engenho das imagens em sua fotografia e composição é a principal preocupação do diretor, que abraça o tempo sem medo para contar a história visualmente com a apreciação devida, um enfoque também observado no amplamente aplaudido The Lighthouse (Dir. Robert Eggers) e na enigmática mas apaixonante viagem estética de Luz (Dir. Tilman Singer).
8- THE PERFECTION (dir. Richard Shepard)
A mistura entre as bizarras reviravoltas, breguice e gore do filme de Richard Shepard o tornam o horror mais divertido produzido pelo Netflix neste ano. A empresa tem produzido bom conteúdo para os fãs do gênero e suas transversais, selecionando projetos interessantes de diretores que merecem ser assistidos apesar de, lá e cá, darem suas derrapadas. Ressalto aqui: Climax (Dir. Gaspar Noé), recheado das mesmas referências a incesto, estupro, infanticídio e abuso de drogas comuns aos filmes do diretor, o que ele realiza com precisão e domínio; Fractured (Dir. Brad Anderson), eficiente brincadeira estrutural de um diretor sólido; The Forest of Love (Dir. Sion Sono), erótico, punk, pessoal e vanguardista como de costume, não chega perto dos melhores filmes do diretor mas mantém sua qualidade intrínseca que prioriza a arte à verossimilhança com o real; e o falho mas interessante Wounds (Babak Anvari), baseado em um conto de Nathan Ballingrud. Ao contrário da maioria das produções americanas, o diretor britânico-iraniano apresenta peças sem molde e que não se encaixam, mas que possuem formas curiosíssimas e fazem refletir, no mínimo, sobre os desejos e comportamentos de uma geração sem identidade e de humanidade questionável.
9- ESCAPE ROOM (dir. Adam Robitel)
No que tange ao entretenimento como objetivo maior, Escape Room é como o melhor brinquedo do parque de 2019. Relembra os clássicos pipoca do início do milênio e tem todos os elementos para se tornar uma franquia memorável, aos moldes de Final Destination (Dir. James Wong). Nesse clima que revitaliza o horror de consumo teen de tempos mais criativos, este ano propiciou argumentos e resultados bem mais interessantes do que o ano passado. Neste pacote podemos incluir Haunt (dir. Scott Beck / Bryan Woods), uma aventura ao estilo Funhouse (dir. Tobe Hooper) com esteróides; Ma (dir. Tate Taylor), que consegue se aventurar no formato de horror “high school” pela beirada à moda de filmes como Apt Pupil (dir. Bryan Singer) e Wild Things (dir. John McNaughton); Polaroid (dir. Lars Klevberg), bom representante no estilo “J-horror genérico” feito por norteamericanos; The Prodigy (dir. Nicholas McCarthy), um thriller de serial killer sobrenatural que parece saído de um VHS dos anos 90, e que conta com uma atuação primorosa do ator mirim Jackson Robert Scott; e Annabelle Comes Home (dir. Gary Dauberman), uma montanha russa de jump scares bem orquestrados no filme mais bem sucedido da boneca até hoje. Não posso dizer o mesmo das superproduções IT 2 (dir. Andy Muschietti) e Doctor Sleep (dir. Mike Flanagan), que, ao apelar para a grandiosidade - tentando parecer mais relevantes do que são de fato - perdem feio em seu maior e único objetivo de entreter, ficando abaixo da média de adaptações mais simples, curtas, sinceras e divertidas da obra de Stephen King. Também enquadro nas decepções dessa linha: Ready or Not (dir. Matt Bettinelli-Olpin / Tyler Gillett), que apesar do que o argumento poderia indicar, não consegue se desenvolver nem engraçado, nem digno de nota em qualquer aspecto. O tempo inteiro o filme tenta parecer mais inteligente e cômico do que é, apoiando-se com a mão pesada no quanto consegue vender a imagem de um clone da Margot Robbie com vestido de noiva, all-stars e uma escopeta. O filme engana bem quem acredita que Suicide Squad (dir. David Ayer) ou Deadpool (dir. Tim Miller) representam o ápice de um cinema “estiloso”.
10- BLOODLINE (dir. Henry Jacobson)
Com inspiração estética nos giallos italianos, Bloodline consegue ser um thriller 100% norteamericano, protagonizado por um serial killer justiceiro à là Dexter. O que seria em primeira instância um filme raso acaba trabalhando bem a construção do personagem através de uma estrutura narrativa e uma trama que se complexificam gradualmente. O assassinato que abre o filme é a cena de morte mais bela de todos os filmes desta lista. Mais vanguardista que Bloodline e no entanto muito próximo é Piercing (dir. Nicolas Pesce), que conta com situações bizarras de S&M e flashbacks estranhamente belos por parte do protagonista, além de atuações sólidas de Mia Wasikowska e Christopher Abbott. É baseado em um romance de Ryû Murakami (autor de Audition). O mais interessante talvez seja que Pesce se apropria das trilhas do Goblin para os filmes Tenebre (dir. Dario Argento) e La Damma Rossa Uccide Sette Volte (dir. Emilio Miraglia), comprovando o caráter experimental do filme e, mais uma vez, a inspiração nos giallos. Apesar de focado em um publico específico pela carga quantitativa de cenas de homoerotismo, vale ressaltar também o francês Knife+Heart (dir. Yann Gonzalez), produção de horror LGBTQ que bebe muito da estética italiana e apresenta alta qualidade técnica, mas formula sua ambientação com os toques de sintetizador da trilha criada pelo grupo M83. Por sua vez, o nada italianesco The Clovehitch Killer (dir. Duncan Skiles) perde consideravelmente em estilo frente aos supracitados. O filme é um drama onde um adolescente é o protagonista que descobre que o pai é um assassino (e com pouca criatividade o fizeram inspirado nos métodos do BTK). Apesar de se estruturar em seu argumento com um grande diferencial dos demais filmes norteamericanos de serial killers (sem o envolvimento de personagens policiais no desenvolvimento da história), o filme acaba se desenvolvendo de forma tão monótona que muito bem poderia passar na Sessão da Tarde, talvez até pela presença pouco convincente de Dylan McDermott como um homem perigoso.
MENÇÕES HONROSAS:
Também disponíveis no Netflix estão Extremely Wicked, Shockingly Evil and Vile (Dir. Joe Berlinger) e Earthquake Bird (Wash Westmoreland). O primeiro é uma adaptação do livro escrito por Elizabeth Kendall sobre sua relação com o assassino Ted Bundy, filme realizado pelo documentarista responsável por Conversations With a Killer: The Ted Bundy Tapes. O resultado fica entre o tenso e o cômico, ao mostrar a loucura de Ted em situações corriqueiras e durante o seu lendário julgamento, sem mostrar nenhuma cena de assassinato. Surpreendentemente Zac Efron tem um momento memorável de atuação e encarna Ted à perfeição. O segundo é um thriller de mistério e erotismo que se desenvolve na Tóquio de 1989, baseado no romance de Susanna Jones, com belíssima cinematografia de Chung-Hoon Chung (Oldboy, Ah-ga-ssi, Stoker) e atuação sólida de Alicia Vikander. Ainda na Tóquio dos anos 80, a série The Naked Director (Vários diretores) é outro presente da Netflix e provavelmente o melhor lançamento dentre as séries do ano: cômica, erótica e abusada, com a cinematografia eficiente de Hideo Yamamoto (Hana-Bi, Ichi the Killer, Audition). Ao mostrar o desenvolvimento do mercado pornográfico no japão, a série apresenta todo o contexto histórico do surgimento do império do VHS, perpassando os devidos questionamentos sobre a censura na ilha do sol nascente. Também entre os japoneses relevantes, temos a estranha investida de The Woman Who Keeps a Murderer (Satsujinki o Kau Onna, dir. Hideo Nakata), um thriller erótico surreal do diretor de Ringu (1998) envolvendo as multiplas personalidades (bem reais) de uma garota. Baseado num romance de Kei Ôishi, o filme é engraçado por suas cenas limítrofes e quase pornográficas filmadas com câmera digital na linha dos pink eigas mais genéricos, e por ser tão desnecessário vale a pena conferir antes de chegar ao Cine Privê. No entanto, vale lembrar que Nakata não é qualquer um e sabe criar seus momentos: a insana orgia com multiplas personalidades no final da obra é extremamente bem fotografada, dirigida e montada.
Filmes que poderiam estar aqui:
Vale ficar de olho nos seguintes filmes que ainda não brotaram pela rede: The Lodge (dir. Severin Fiala / Veronika Franz) e Impetigore (Perempuan Tanah Jahanam, dir. Joko Anwar). Talvez algum deles estivesse ocupando hoje um lugar nesta mesma lista.
A Mostra de Cinema CINE HORROR, em sua oitava edição, anuncia o resultado da primeira premiação de melhor filme nacional.