Introdução
A proposta foi boa: conceder várias revistas e liberdade criativa a um dos responsáveis pela revolução nos Quadrinhos que fora a Marvel Comics. Daí saiu The Demon (do personagem Etrigan, de setembro de 1972 a janeiro de 1974), O.M.A.C.: One Man Army Corp (de setembro de 1974 a novembro do ano seguinte) e Kamandi, de todas a mais longeva (39 números de sua própria lavra, de abril de 1974 a março de 1976). Criava Omac ao mesmo tempo em que Kamandi, ambos em futuros medonhos, ainda que distintos. E saiu também os Novos Deuses.
Foi chamado de Quarto Mundo, e de entrada compreendeu-se como uma superação, em vários níveis, inclusive o metalingüístico, de suas histórias anteriores com Thor, com os deuses nórdicos. Depois faria para a Marvel uma interpretação sua dos deuses olímpicos, como experimentos genéticos de astronautas descomunais, os Eternos (em série própria publicada de 1976 a 1978). O termo Quarto Mundo, cunhado no mundo real, foi absorvido metalinguisticamente pelos quadrinhos, ganhando uma explicação própria, com três “mundos” precedentes.
A iniciativa por trás dos Novos Deuses foi surpreendente: quatro revistas feitas simultaneamente, com uma avalanche de conceitos, personagens novos, situações nunca vistas, inter-relacionando-se em uma guerra entre Deuses espaciais cujo teatro de ação seria primariamente a Terra. Eram as revistas Jimmy Olsen Superman´s Pal, The New Gods, Mr. Miracle e The Forever People. Não eram publicadas todas no mesmo mês, nem começaram, ou se encerraram, ao mesmo tempo.
Iniciou em setembro de 1970, em Jimmy Olsen Superman´s Pal #133. Foi em fevereiro de 1971 que começou The New Gods. No mês seguinte, The Forever People. E em abril, Mr. Miracle. As revistas saíam a cada dois meses, com exceção da revista de Jimmy Olsen, de onde se retirou na edição #148, em abril de 1972. As demais revistas continuaram por algum tempo mais. The New Gods encerrou no #11, em outubro de 1972. No mês seguinte, findou The Forever People também com o mesmo número. Mr. Miracle seguiu ainda por mais de um ano, encerrando em março de 1974, ao número 18. De setembro de 1970 a março de 1974, todo mês saía pelo menos uma revista com roteiro e desenho de Jack Kirby.
Foi um feito notável por várias razões.
Nunca alguém desenhou e argumentou tantas revistas simultaneamente sozinho, não que que tenha notícia. Nunca alguém fizera algo tão coordenado, onde uma mesma tapeçaria se manifestava ao mesmo tempo sob diferentes ângulos. Não bastasse isso, é o traço de um artista talentoso, no seu auge. E os personagens... estes são um caso à parte. Neles, vamos tentar entender o que é essa “divindade” de que trata Kirby, tão importante, tão central em títulos que orbitam em torno da idéia de Novos Deuses. E as insólitas sínteses que fez nessa singular empresa nos quadrinhos.
Céu e Inferno
De entrada, temos a concepção original de planetas inteiros como loci do Bem e do Mal, como o Céu e o Inferno. Planetas que nascem gêmeos, do parto, da destruição monstruosa, do mundo dos Velhos Deuses, do seu Ragnarok, estabelecendo uma Nova Era. Haverá ruínas de tal lugar (aparentemente, só em Nova Gênesis, como muro onde a Fonte escreve seus ditos, e as crateras onde Lonar encontrou o cavalo de batalha, Trovejante).
O lar dos Velhos Deuses sequer aparece como um planeta, e sim como uma massa rochosa que lembra a forma como o próprio Kirby desenhava Asgard. Da massa resultante, como que em tempos cósmicos, nascem, em revoluções, dois planetas. John Byrne, anos depois, desenhará como se dois planetas emergissem por inteiro de uma só vez.
The New Gods #1 (1971 fev)
Outra indicação de que tal mundo era Asgard está quando Metron explica que os Velhos Deuses tinham uma ponte para a Terra (que poderia ser entendida com Bifrost) e que o Ragnarok a destruiu. A nova conexão se deu a partir dos Tubos de Explosão, algo de matriz tecnológica, e metafísica, como se verá.
Apokolips é, além de um Gulag planetário, uma imagem do próprio Inferno. Seus poços flamejantes descomunais, do tamanho de continentes, evocam essa imagem. Ele é guardado por para-demônios.
Armagetto é tanto o Gueto (no sentido “clássico” da palavra) quanto o Armaggedon,
Mr. Miracle #9 (1972 ago)
Nova Gênesis é o Céu e o Éden criado por mão humana.
Ou seja, da Asgard, como parte dos Nove Mundos ou Reinos, da mitologia nórdica, ele literalmente constrói uma nova simbologia, agora marcada pelo substrato judaico-cristão, polarizado pelo Céu e o Inferno.
Kirby articula imagens e temas tanto do classicismo como da Bíblia. Porque a SuperCidade é também Olimpo, Asgard, e a Jerusalém Celeste que paira sobre o mundo. Natureza e Artifício se complementam.
The New Gods #1 (1971 fev)
Essa síntese que Kirby faz é rica exatamente porque a tarefa não é fácil. A fusão aconteceu de maneira original. O mundo primordial não era idílico: era o dos Deuses, que findou com o Ragnarok. Com a Guerra. Não era um mundo exemplar, do contrário não teria se destroçado. Ali estava a lição para os Novos Deuses, ou ao menos para Izaya, afinal o espectro da Guerra assola também o Quarto Mundo. Primeiro, com o confronto entre Apokolips e Nova Gênesis. E depois, no novo ataque que concluiu com a destruição de Nova Gênesis.
A Paz era o único caminho para a beleza. Do contrário, sabia o Pai Celestial, repetiriam os erros e o destino dos Velhos Deuses.
Mas espectros mais literais rondavam os planetas gêmeos. Nova Gênesis se vira abençoado pelos “átomos vivos” do nobre deus Balduur (Balder, na mitologia nórdica, era o deus solar), e Apokolips, atormentado pela sombra de uma antiga feiticeira.
Em Verdade, Semi-Deuses
Os Novos Deuses são semi-deuses, como eram Hércules e Gilgamesh. E no que diz respeito à Guerra e à Paz que está a sutil articulação que Kirby realiza de tradições tão distintas.
Órion, verdadeiro filho de Darkseid, traz a mácula do pai. A feição grosseira, selvagem, ainda por cima lacerada, como seu corpo, por incontáveis batalhas. Seu impulso guerreiro o torna o grande soldado de Nova Genesis, que fará as missões mais arriscadas. No entanto, se em outros quadrinhos Kirby se impressiona e elogia a bravura, o valor em combate, essa extravasão vital, aqui ela se torna um problema. Já que os Velhos Deuses, por trilharem o caminho do combate, por isso se extinguiram.
Lonar, pesquisando as ruínas dos Velhos Deuses, percebe neles uma cultura da violência. Tentará resgatar os aspectos grandiosos e magníficos, corporificados no cavalo de batalha Trovejante. Mas sabe o preço daquele modo de viver.
The Forever People #5 (1971 nov)
The New Gods #1 (1971 fev)
Daí um código pessoal de combate que regia ainda o mundo de Steppenwolf e Izaya. Darkseid, apesar de furtar-se ao combate, e de usar estratagemas, ainda respeita esse modo de pensar. E que se apresenta, ainda que de modo distorcido, em Apokolips, como observam os para-demônios. Em Nova Gênesis, ninguém mais possui o élan do guerreiro, exceto Órion, que não é nascido ali. Isso o torna o ponta-de-lança, o guerreiro solitário por Nova Gênesis, sempre pronto a investidas audaciosas em Apokolips. Se faz acompanhar de Lightray, que é ligeiro em todos os aspectos, uma espécie de raio de luz sem maiores sombras em si mesmo.
Nesta obra estavam lado a lado os valores da paz e o respeito pelo guerreiro. E, em dado momento, a escalada da guerra chega a tal ponto que pulveriza os valores arcaicos da batalha corporal, alcançando o extermínio absoluto. Nesse momento, Órion estará obsoleto, e a saída será a paz.
Kirby imagina guerreiros maiores que a vida. Thor é um deles. Tudo nele é musculatura, força, prestes a explodir. Em Novos Deuses, tal papel cabe a Órion. Nos Eternos, a Ikkari. Em dado momento, nas histórias do Thor, Odin percebe que seu filho se deixara tomar pela loucura do guerreiro, um crime abominável. Aqui estaria a semente dessa concepção, do furor da luta tornar-se uma demência cruel.
Thor #166 (1969 jul)
Órion entrega-se a essa fúria em mais de um momento, a exemplo do seu confronto com Slig, onde trai seu real espírito. Essa fúria é sua essência. O próprio Odin, Pai de Todos (All-Father), é um guerreiro, e está a mostrar o tempo inteiro sua soberania, que dele é a palavra, o caminho, a vontade, a maravilha (word, way will, wonder), em combinações que comuta de acordo com a história.
Thor #145 (1967 out)
Em Thor, o papel de par feminino foi dado para Lady Sif, uma guerreira capaz e disciplinada, à altura do Filho de Odin, no lugar da doce e frágil Jane Foster. Substituía a mulher indefesa que Stan Lee repetidamente punha nos quadrinhos pela mulher que Kirby concebia. No Quarto Mundo, a bela guerreira, a mulher deslumbrante, é Grande Barda, a quem ainda por cima foi dada algo de criança, de ingenuidade, em seu porte estatuesco.
Muito não está claro na delimitação da divindade dos Novos Deuses.
Enquanto alguns dos Deuses possuem poder pessoal, como Lightray e Darkseid, e, em outra medida, Grande Urso e Bela Sonhadora; outros são apenas fortes, como Grande Barda, e alguns são extremamente dependentes de bugigangas, gimmicks, como Serifan e Sr. Milagre. Alguns são portadores, contendo em si ou em suas armas, forças estranhas e únicas.
Como no credo de muitos povos, Kirby parece pensar em termos de força pessoal, de uma vitalidade que se manifesta visivelmente, mas que está latejando no ser. Uma força que, mesmo em um pacifista convicto como o Pai Celestial, pode um dia vir à tona. Está ali, em suas mãos, sensíveis ao toque de uma criança. Essa vitalidade se faz mais presente no guerreiro.
Dentro disso, o aspecto exterior é uma expressão do interior, ao menos no Quarto Mundo. O rosto sereno de Órion, semelhante mesmo ao Príncipe Valente de Hal Foster (como será Ikkaris, dos Eternos), é obra física e espiritual da Caixa Materna, que reconfigura a matéria e acalma sua alma. Seu rosto real é torturado, com espessas sobrancelhas ruivas, à maneira da sua mãe Tigra. Essa tormenta interior e sua feição monstruosa, ainda agravada pelas cicatrizes em cada combate, eram a marca de um nascido em Apokolips.
The New Gods #3 (1971 jun)
Esak se deforma também física e espiritualmente, e torna-se digno de Apokolips. Morto, retorna à expressão angélica que possuía, mesmo após haver torturado homens e criado armas de destruição massiva.
Parece não haver exatamente uma barreira, uma diferença substancial, entre os seres vivos. Eles podem ascender de uma categoria a outra, tanto do ponto de vista evolutivo, como em ápices singulares ou por treino.
Dos Cães Famintos (hunger dogs) saem os soldados, que serão “deuses”, bastando que demonstrem um lampejo de fúria e revolta, matéria-prima ideal para ser lapidada nos guerreiros. Nunca fica claro se há uma diferença real entre os Deuses sombrios de Apokolips e a massa oprimida em Armagetto.
Os Para-Demônios, tratados nas histórias pós-Kirby como criaturas monstruosas e sub-humanas, são fisiologicamente distintos, porém a disparidade não é tão grande. Os homens, no ápice do seu entusiasmo, de suas paixões, também igualam os Deuses, em alguma medida. Como fez Turpin, o Terrível, com sua sede de matar, ao enfrentar mano a mano Kalibak.
The New Gods #8 (1972 abr)
Em Kirby essa visão monista do Universo com a alma humana perpassa a obra, e se manifesta em seu traço vigoroso. Não há na sua obra uma divisão nítida, que se tornou usual nos quadrinhos e que tem muito de banal, entre Magia e Ciência. Como se houvessem duas forças de natureza distinta: uma manuseável por instrumentos físicos ou por criaturas vivas, e outra que só pode se acedida por feitiços, amuletos, maldições, com uma capacidade mais elástica. Não. Em Kirby, há só o Poder. E este ganha uma expressão gráfica própria, um miasma crepitante que é um misto de luz, chama e fumaça, transbordando. Este recurso gráfico, praticamente inventado por ele – reconhecido e chamado de Kirby Krackle –, tornou-se uma de suas marcas, e recurso copiado pelas décadas seguintes, embora sem o seu vigor, como uma espécie de símbolo visual a mais em uma paleta empregada para assinalar “energia”. Sem a sua visão pessoal, sem a sua mão, perdeu a força.
No entanto, a história mais estranha, que acrescenta uma camada mais ao Quarto Mundo, é a apresentada em The New Gods #9, chamada Bug. Nela somos apresentados a uma colônia de humanóides, insetos de origem, que vivem sob a superfície de Nova Gênesis, atacando os estoques de comida dos Deuses para sobreviver. São entendidos como praga, e assim tratados, sempre chacinados por inseticidas, a morte aérea. Os jardins de Nova Gênesis são, observe-se, controlados pela mão humana. E aqueles seres, humanóides, inteligentes, e em evolução, são simplesmente mortos, sem que sua escalada à inteligência e emoções superiores seja sequer percebida. Esta é uma nota sombria no Paraíso.
The New Gods #9 (1972 abr)
The New Gods #9 (1972 abr)
O protagonista chama-se Forrageador. Ele está além dos companheiros da colônia. O que os demais vêem como subsistência, ele vê como nobres valores: coragem, lealdade, fraternidade. O Primordial (Prime One) suspeita que não apenas ele é diferente dos demais, mas que tais valores são a maneira como os Eternos, isto é, os Deuses, pensam. Que o Forrageador, de uma maneira, é um Eterno que foi parar ali, e não um inseto. Por meio dele, finalmente conseguirão se comunicar com os Deuses, deter o morticínio e quem sabe evoluir, ascender, adquirir aqueles nobres sentimentos de que careciam (mas que curiosamente o Primordial já possuía em alguma medida).
Mantis incita uma rebelião contra os Deuses, e Primordial, condenado a perecer pelo bem da colônia, como é seu papel e periodicamente ocorre, percebe que serão tratados como armas, nunca como iguais. Não apenas o Forrageador estava ascendendo ao nível dos Deuses, como Mantis emergira daqueles insetos, a ponto de ser superado apenas por Darkseid em “poder”, em Apokolips, e devido aos seus ciclos biológicos.
Por outro lado, interfaces dos Novos Deuses com forças superiores.
Aquela noção da força pessoal faz com que Kirby os associe às forças atmosféricas. No auge da fúria, os guerreiros farão os elementos convulsionarem. Com Thor isso também ocorria, mas havia um nexo causal lógico, dado pelo personagem ser o Deus do Trovão – a rigor, da atmosfera. Em Novos Deuses, não. No entanto, a fúria de Órion desencadeia tempestades.
Os relâmpagos rasgam o céu no combate anunciado entre Órion e Darkseid, pai e filho.
The New Gods #1 (1971 fev)
A tempestade também se avoluma no auge da história O Barco da Glória, no choque eminente com um Leviatã apocalíptico. No casamento da Grande Barda com Scott Free, um furacão se aproxima, e Darkseid se revela. Ele não estava escondido atrás do furacão: ele era o furacão.
Mr. Miracle #18 (1974 mar)
E também a relação peculiar com artefatos e forças misteriosas, que se confundem.
É mais um cacoete de Jack Kirby a individuação de armas e de forças a cada personagem, aparentemente criadas no momento, como que de improviso, um recurso narrativo fácil, que vai se sucedendo indefinidamente, sem um roteiro.
Cada personagem possui uma arma própria. Essa arma pode ser mesmo ridícula; mas Kirby a trata com extrema dignidade, com extrema seriedade. Algumas entraram no imaginário dos quadrinhos. Outras desapareceram. A mais famosa é Mjolnir, o malho de Thor, de origem mitológica. Mas o cetro, que também funciona como malho, que o seu Hércules usa, em confronto franco com Thor, não existe. Assim como as peças de Ulik, o troll, o estranho soco-inglês, à maneira de pilões, ou as armas da Gangue da Demolição. Nas histórias do Quarto Mundo, é a Beta-Clava de Kalibak, a Faca Fahren de Bernadeth, as correntes de Lashina, o Mega-Bastão de Grande Barda, o chicote com arremate de machado de Trok, ou a Mão de Pedra de Brola.
Mas tem algo mais: Kirby inventava forças. Poderes. Energias. Algumas ficaram. Outras, não. Darkseid era o único senhor do Efeito Ômega. Mas seu filho, Órion, controla a misteriosa Astro-Força, como havia o Toque Megaton de Mark Moonrider, ou ainda a Nega-Força e os Gravi-Raios do Homem-Infinito, e ainda Magna-Raios ou Sigma-Raios. Destas, a que se revelou mais importante nas histórias de Kirby, e que se espraiou nas continuações e versões para outras mídias, implantando-se mesmo no imaginário, foi o Efeito Ômega.
Nos quadrinhos pós-Kirby, na maioria das vezes é tratado como um raio muito poderoso. É a abordagem fisicista tacanha, usual. De entrada, Ômega é um termo da interpretação bíblica tradicional, e o texto de Kirby é claro: como o Alfa é o Início, o Ômega é o Fim. A total aniquilação de qualquer coisa, a ponto de apavorar os mais próximos.
Claro, isso cria um dilema narrativo interminável: se um personagem (um vilão) possui um expediente capaz de simplesmente atomizar seus adversários, porque não o emprega? A explicação mais usual – e menos convincente – que sempre resguarda a altivez do vilão é: ele tem outros planos para o antagonista. Pretende fazê-lo sofrer. Ou não quer se rebaixar a isso. Etc. Em compensação, está pronto a aplicar esse destino a qualquer lacaio que esteja por perto. Assim, Darkseid poupa o Povo da Eternidade, por serem ainda crianças. Mas aniquila seu velho amigo, Desaad.
Na concepção de Kirby, o importante é a ressonância do Ômega. Que é uma arma imbatível, ainda mais com seus finding beams, que se tornaram marca registrada visual. Já na primeira história em que emprega tal meio, de fato o que faz é jogar o Povo da Eternidade em eras passadas.
Na revista The Forever People #6 (1972 jan) é dito que se o Alfa é o começo de todas as coisas, o Ômega é o final. Com o Povo da Eternidade disperso na corrente do tempo pelo Efeito Ômega, o Pai Celestial empregou as Balas Alfa (alpha bullets) para resgatá-los.
The Forever People #7 (1972 mar)
Assim, o Ômega está em Apokolips – versão de Apocalipse, o último livro bíblico, que trata do Fim dos Tempos – onde se procura a Anti-Vida, a fórmula da escravidão perpétua. E Alfa esta em Nova Gênesis – o livro bíblico da Aurora dos Tempos –, onde se cultua e exercita a Liberdade, que é a equação da Vida
O Efeito Ômega é versátil. Permite a mera concussão, como emprega com Desaad.
The New Gods #11 (1972 out)
Ele é tratado com temor e reverência, pois é capaz da total aniquilação, como diz Desaad (The Forever People #6), para além das meras ressonâncias bíblicas (o Ômega). Sem vida, sem morte. A desaparição absoluta. Inclusive do seu passado, idéia incrível que infelizmente nunca foi explorada.
No entanto, raramente empregada. Outra são os finding beams, a forma dos seus raios que constitui a “força que não conhece barreiras”, raios que buscam em qualquer lugar, incessantemente até encontrar seu alvo. É uma concepção genial, em si mesma e em seu arranjo gráfico, adotado como padrão posteriormente. Isto é, aquilo que é uma forma específica do poder de Darkseid – a ativação dos finding beams – tornou-se depois a característica principal do Efeito Ômega, retorcendo-se no ar, mesmo quando uma linha reta era o menor caminho.
Outro é a regressão no tempo, que ele emprega no Povo da Eternidade. Poder fascinante em si mesmo, encaixa no problema narrativo descrito. Usa um poder descomunal, para um fim extravagante. E permite ao desenhista brincar com outros cenários possíveis. Em verdade, abre a possibilidade de qualquer cenário. E, na penúltima história, Even Gods Must Die!, a reconstituição corpórea do amigo Desaad, o único em quem aplicou a aniquilação absoluta. Ou seja, o Efeito Ômega é capaz de desfazer até mesmo isso.
Parte disso, onde se mesclam as forças misteriosas e sua manipulação em artefatos, está nos meios de locomoção dos Novos Deuses.
Alguns têm a capacidade de voar por conta própria, como Lightray ou Magnar. Outro, por meio de veículos, que são os mais variados possíveis, alguns discretos, como os aero-discos dos Aero-Troopers de Apokolips, ou Fastback, de Nova Gênesis, com seus aero-pads. Órion possui seu próprio aparelho, dentro da tônica de Kirby de individualizar os recursos. O tópico é interessante porque as Caixas Maternas são responsáveis pelo mais famoso dos meios: o Tubo de Explosão (Boom Tube), e que permaneceu nas versões subseqüentes a como marca registrada dos Novos Deuses, até mesmo nas animações. Lembremos que este recurso tecnológico permitiu recompor o contato deles com a Terra, perdido no cataclisma que se seguiu ao fim dos Velhos Deuses.
Superman's Pal, Jimmy Olsen #145 (1972 jan)
Também a Caixa Materna é responsável por um constante phase-out, que permite os seus proprietários ficarem invisíveis e intangíveis, atravessando objetos sólidos e mesmo se transportando. Nunca fica claro como esse recurso funciona.
Em um dado momento, a partir da descoberta do Elemento-X e da tecnologia que Metron desenvolve a partir dela, se cria o Transmissor de Matéria, chamado poeticamente também de Porta para Qualquer Lugar (door to anywhere), que suplanta o difícil traslado veicular espacial, e permite que Apokolips transporte suas tropas e suas pesadas máquinas de guerra a Nova Gênesis. Não se explica se esta se relaciona com o processo de defasar-se (o phase-out citado). E se fala que o Tubo de Explosão superou este meio, porém sem explicações sobre sua relação.
Independente disso, outros meios aparecem, relacionados.
O Cajado do Pai Celestial transporta, até mesmo entre os mundos.
Superman's Pal, Jimmy Olsen #147 (1972 mar)
A Poltrona Mobius pode deslocar-se de um canto a outro, como que meramente se teletransportando – sabemos que usa o Elemento X – assim como se desloca de modo físico.
The New Gods #4 (1971 ago)
O Mega-Bastão (mega-rod) de Grande Barda também pode tal teleporte, e também faz seu portador voar, como uma versão tecnológica do Mjolnir.
E o Efeito Ômega.
O Povo da Eternidade que percorre uma auto-estrada ainda mais penetrante que o dos bikers norte-americanos: a estrada eletrônica (electron road), análoga à jet stream, porém mais complexa (The Forever People #7, 1972/mar) .
A Fonte
Os Novos Deuses eram, assim, semi-deuses. Em um outro patamar, infinitamente acima, está a Fonte, o Deus único, distante e incompreensível, que se manifesta pontualmente, por meio de elos igualmente misteriosos. Ou seja, o Bem e o Mal, Céu e Inferno, estão simbolizados, e defendidos, pelos semi-deuses; o Deus único está acima disso.
A Fonte não parece ter sido uma presença nem no mundo dos Velhos Deuses, nem durante as guerras devastadoras com Apokolips, deflagrada pelo assassinato de Avia.
O mundo dos Velhos Deuses não parecia ter ciência dessa força superior, de onde emanava seu poder e autoridade, e talvez por conta disso tenha sucumbido. Uma nova iluminação permitiu à geração seguinte de semi-deuses estabilizar-se na própria ordem cósmica.
Sua aparição, sua Revelação, na história dos Novos Deuses ocorre em breves cenas de extrema profundidade. Izaya se dá conta que a corrida armamentista havia transformado Nova Gênesis em uma réplica de Apokolips, partícipe da violência, e igualmente arruinada. Buscando a si mesmo, vai ao Deserto.
The New Gods #7 (1972 fev)
O Deserto é um tema bíblico. Não como cenário, mas como etapa na transformação dos profetas, onde encontram-se com Deus, ou onde resistem às tentações, voltando para a civilização determinados e puros. Aqui é uma Terra Desolada, onde antes havia as suaves florestas de Nova Gênesis, assolada por tempestades elétricas, com decrépitas máquinas de guerra arruinando-se. Desta paisagem arquetípica nascem os profetas, que retornam após uma Revelação. E uma Revelação Izaya terá.
Ele busca a si mesmo. Uma orientação no caos, na guerra, no morticínio, que só poderia vir de encontrar a verdade de sua própria alma. Quem era o verdadeiro Izaya.
Vagando no deserto, buscando Izaya, acaba por encontrar ruínas do Velho Mundo. Um muro. Um reles muro. Como aquele que resta do Templo de Salomão. Nele, aparece uma mão de chamas (em vez de uma sarça ardente, que apareceu a Moisés) que escreve no muro (em vez das tábuas da pedra) uma mensagem.
The New Gods #7 (1972 fev)
A mensagem era ela mesma: a Fonte. Eu sou aquele que sou, disse Javé a Moisés. Seu próprio nome disse a Fonte para Izaya. E ele se encontrou. Ele retorna como um Pastor de Homens, o Pai Celestial. Buscando a verdade de sua vida, encontrou o que une os homens ao Uno, à própria raiz do Universo, a Fonte.
A Fonte continuará se comunicando aos Novos Deuses por meio dessa mão flamejante no muro branco.
The New Gods #1 (1971 fev)
A Fonte é a força por trás de tudo. O fundamento, o princípio, o archai, anterior e universal, acima de todos e além do Universo. É o Verdadeiro Deus. Por trás de Asgard, Javé. O Deus platônico, invisível, no centro de tudo. E o Deus Escondido, deus absconditus, da qual emanarão seus ritos – fúnebres, matrimoniais.
Mr. Miracle #18 (1974 mar)
O Muro é o local das Revelações, sucintas, porém não enigmáticas, onde dita os rumos futuros. Não como obrigações: pois cabe aos Novos Deuses optarem por seguir ou não as indicações. Pois esta é a Equação da Vida.
A Fonte “fala” apenas pelos misteriosos dizeres no muro. De resto, se manifesta de modos misteriosos. Ela é tratada em alguns momentos como o Infinito. Parece haver uma concepção não muito diferente da do filósofo grego Anaximandro, que percebia o mundo como uma ilha de ordem conhecida cercada do infinito, do apeiron.
Esta aparece como a Galáxia Prometeana. Nas versões posteriores será uma portentosa muralha composta de gigantes. Todos os que pensam em atravessá-la se transformam eles mesmos na muralha. E em alguns casos se poderá resgatar alguém da muralha. Não na versão de Kirby. Aparece, em tal Galáxia, uma imagem monstruosa, poderosa. Um misto do gigantesco Atlas, de braços abertos, imobilizado, e de Prometeu, acorrentado no Cáucaso. A pretensão, aqui, não foi contrariar Zeus e brindar o fogo aos homens, e sim ousar penetrar na Fonte – conhecer o agnoto theos, o deus desconhecido, sem nome, que é, como dito, oculto.
The New Gods #5 (1971 out)
As figuras descomunais são antigos seres que tentaram alcançar a fonte por sua ampliação. Ficaram petrificados, ou, pelo menos, sua vida corre em uma velocidade incomparavelmente mais vagarosa. Os Gigantes, desesperados, estão por toda a eternidade preso a asteróides. Mescla-se a pretensão de Prometeu e sua punição na distância do Cáucaso, cadeia montanhosa liminar do ecúmeno, com a Torre de Babel.
A Fonte é indevassável.
Ela se manifesta ainda em outros elementos. Um deles são as Caixas Maternas, que possuem essa estranha conexão com o Infinito, obra de Himon, embora apenas se aluda a isso.
A Caixa Materna é uma verdadeira caixa preta ficcional, sem maiores explicações. A comunicação se dá com elementares pings, compreendidas pelos Novos Deuses. A Caixa Materna é ás na manga dos personagens, e do argumentista. Os Novos Deuses de ambos os mundos podem coisas extraordinárias com as mesmas, e com isso Kirby consegue ter liberdade para qualquer rumo. Prestam-se a tudo, a todos os milagres. Como reduzir e expandir o tamanho “dos átomos”, ou abrir os Tubos de Explosão, fazer o phase out, tornando o seu portador intangível. No caso do Povo da Eternidade, a sua particular Caixa Materna (uma para cinco pessoas) pode invocar o Homem-Infinito, trazendo-o e trocando de lugar com o Povo da Eternidade. Pode proteger o seu dono, mesmo às suas custas. Ou rearranjar os “átomos” dos seres, e dos rostos, curando as feridas.
The New Gods #5 (1971 out)
As Caixas Maternas são seres vivos. Construídas manualmente, não nascem se não houver algo de alma no seu autor, alguma qualidade, como uma interioridade própria, que estabelece de fato a conexão com a Fonte. Kreetin, pusilânime Cão Faminto, seguiu os desenhos técnicos de Himon mas fez uma Caixa Materna inerte.
Mr. Miracle #9 (1972 ago)
E elas podem morrer. Ou por sacrifício, protegendo seu dono.
Mr. Miracle #2 (1971 jun)
Ou assassinadas, o que é algo com um quê de blasfêmia.
The Forever People #4 (1971 set)
O próprio Darkseid não gosta da idéia.
The Forever People #4 (1971 set)
Outros dois vínculos estão no cajado do Pai Celestial, o Cajado Maravilhoso (Wonder Staff), e um cartucho cósmico (cosmic cartridge) de Serifan.
O Cajado é a versão pastoral e pacífica do antigo bastão-de-guerra de Izaya, e é dito que constitui tal vínculo. Aparece com o poder de transportar o Super-Homem para a Terra em um piscar de olhos. É o cajado de Aarão, operando milagres oriundos de Javé.
The New Gods #1 (1971 fev)
O cartucho de Serifan é capaz de infundir vida seres inanimados, parecendo, ele mesmo, estar de alguma forma vivo.
The Forever People #2 (1971 mai)
O que se vincula ao reverso da doação de vida, de êmulos da alma (como no caso do cartucho) ou de almas reais (a Caixa Materna): o destino das almas na hora da morte. Ao menos daquela dos Novos Deuses.
Os corpos podem ser reconstituídos, como o são por uma nova máquina. Mas são corpos vazios, ocos, sem alma. O espírito não retornou da Fonte.
O segredo da Vida pertence à Fonte. O destino das almas pertence à Fonte. E sob o mandato da Fonte está o emissário da Morte, o Corredor Negro
Ele é o Ceifador, o avatar sombrio da fatalidade. Um esquiador, que é uma idéia idiota, figurativamente infantil, que Kirby torna convincente, com sua inabalável fé cênica. Lembra, claro, outra criação sua: o Surfista Prateado. Os avatares humanos são escolhidos pela Fonte, e como tudo o que a Fonte faz, é incognoscível, e obedece somente a seus desígnios.
The New Gods #3 (1971 jun)
Conclusão
Kirby, em seu furor criativo, lançou uma série de minérios brutos, preciosos, sem grande lapidação. Em muitos casos, é justamente essa indefinição, a falta de uma história precisa, sua manifestação como um nome, como uma imagem poderosa, grandiosa até, que nos sugere histórias não-escritas, que reverbera em nossa imaginação, a partir de nomes ou elementos visuais familiares.
Como obra de Jack Kirby, será a continuação e desenvolvimento de uma série de temas presentes em outras obras anteriores e posteriores. E mesmo seus cacoetes gráficos e narrativos. Narrativos como a ênfase na batalha, nas cenas de luta, nos dramas interiores expressos de maneira exagerada, o histrionismo caricato dos sentimentos. O sensacionalismo nas chamadas de capa, da primeira página e os ganchos para a edição seguinte. É preciso entrar nos tempos de Kirby. Foi um homem que praticamente estabeleceu um padrão de escrita, desenho e narrativa velozes, alucinantes para a época, lutas titânicas, com explosões descomunais, páginas duplas com paisagens cósmicas. Nessa montanha-russa, criou momentos líricos, alguns profundos, que mereceriam ser expandidos e explorados. Não era do seu feitio, porém, fazê-lo. Criou como brechas para desenhistas com essa sensibilidade maior. Desejava criar um épico (antes que a palavra se tornasse um chavão) para os tempos modernos: An epic for our time, diz na capa de The New Gods #1 (1971 fev). Não tinha o tempo nem o temperamento para as pausas que sugeria no vasto empreendimento.
E, claro, outros elementos que estão dentro do gênero próprio são os collants, as armas com nomes próprios, lugares-comuns dos quadrinhos de super-heróis, que o próprio Kirby ajudou a criar. Ainda assim o vestuário terá suas singularidades. Alguns seguem a tônica dos quadrinhos, como Lightray e Mantis. Mas o traje de Órion é muito simples para o gênero.
O Sr. Milagre, com cores exageradas, já que seria um artista de fugas, um personagem do circo e do vaudeville. E os demais personagens terão trajes inspirados em fases... da Terra.
Serifan era um cowboy. Os Cabeludos (Hairies) e Povo da Eternidade (Forever People) são inspirados nos hippies. Como da banda San Diego Five String Mob, trupe de Apokolips infiltrada. O Povo da Eternidade compartilha com os Outsiders o seu jeito de peregrinos motorizados pelo mundo (os Outsiders sendo bikers no estilo Easy Rider ou Hell´s Angels). Virman Vundabar, um oficial prussiano, com indumentária, apetrechos, gestual e maneira de falar, irradiada para seus lacaios. Kanto, um renascentista bastante estilizado. Desaad, com as longas vestes de monges, talvez baseado na idéia da Inquisição. Darkseid, na simplicidade e ascetismo padronizado de certos Ditadores Totais. Todo e qualquer elemento da cultura universal é absorvido por Kirby. Os surfistas servem de base visual para um arauto espacial de um faminto deus cósmico. Os esquiadores, uma versão atualizada da Morte, um misto do Ceifador com Hermes, de velocidade imbatível.
Em Novos Deuses, alguns nomes são sonoros, mas trocadilhos fáceis: Darkseid/ Dark Side; Desaad/ De Sade; Seagrin/ Sea Green; Vykin/ Viking; Simyan/ Simian; Kreetin/ Cretin. Outros se justificam porque são piadas da Vovó Bondade. Muitos são as aliterações usuais dos quadrinhos: Granny Goodness (Vovó Bondade), Virman Vundabar, Big Barda (Grande Barda).
Mas nessa montagem heteróclita se sobressairão os elementos greco-latinos e os judaico-cristãos. Órion fora poderoso guerreiro da mitologia grega. Lightray é Apolo – como poderia ser Balder, da mitologia nórdica. Em série posterior, os Eternos, faz Novíssimos Deuses na Terra, resultados da engenharia genética de gigantescos e incognoscíveis astronautas imortais, inspirados nos deuses olímpicos: Zuras será Zeus, Makkari, Mercúrio. A explicação é reversa: tais seres inspiraram os deuses greco-latinos. Metron significa Medida, em grego, e nos ressoa como algo “métrico”, preciso. No entanto, destacamos como mais importante os termos bíblicos.
Nova Gênesis e Apokolips são os mais evidentes. Mas Izaya se torna o Pai Celestial (Highfather), o patriarca e o pastor dos povos, com seu cajado. Nas edições de The New Gods #5 e #6 aparece um Leviatã, criado pelos Seis Profundos (Deep Six), uma monstruosidade oceânica para destruir os navios humanos. Sua destruição se dá em uma pira funerária de inocentes mortos no encontro com os Seis Profundos, em uma destruição “wagneriana”, como narra o próprio Kirby (que também faz a associação com o Leviatã bíblico). A pira funerária também fora feito para Seagrin, companheiro morto pelos Seis Profundos, em meio a uma tempestade. Aparece um Esak, sendo levado, como o profeta Isaías bíblico, aos mundos superiores, conduzidos por um homem em um trono. Órion e Kalibak revivem a eterna luta entre irmãos, entre Caim e Abel, Esaú e Jacó.
A interpretação usual dos personagens é a anabolizada (em especial o vilão Darkseid), que os entende, como todos os demais, somente em termos de poder. Do confronto físico, invariavelmente descambando para socos e pontapés. Mesmo versões mais recentes, com toda a capacidade gráfica e talento dos seus desenhistas, é tristemente adolescente. A noção, bidimensional e mesmo infantil, e em parte responsabilidade do próprio Kirby, é a de que Divindade é Força. E, sobretudo, física. Perde-se a dimensão “metafísica”. Há uma interpretação mais rara, que aprofunda o caráter divino dos Novos Deuses. Grosso modo, foi feita somente por Alan Moore e Grant Morrison. Mas é que se perdem esses dois estratos e seus meios de contato: semi-deuses próximos aos homens, e um outro nível muito superior. Por trás dos Novos Deuses tecno-científicos, um Deus oculto e presente, desconhecido e conhecido, antigo e eterno, em quem as palavras escasseiam ou mesmo desaparecem. E Kirby, sem uma grande capacidade em termos de roteiro, sabia disso à perfeição.
Colocar algo como diálogo arruinaria o mistério. Isso foi feito, sem talento algum, por Jim Starlin, que tem a compulsão absurda por prosopopéias, por transformar em paródias de seres humanos o que deveria ser algo obscuro, como a Anti-Vida (em sua Odisséia Cósmica, 1988-89), ou fazê-las falar de maneira mundana, como fez com a própria Fonte (em seu terrível A Morte dos Novos Deuses, 2007-8). Kirby não cometeu essa estupidez.
Os Celestiais, aqueles deuses-astronautas que criou para a Marvel Comics, eram presenças descomunais, mas impenetráveis: não falavam, e sequer podemos ver suas expressões, naquelas máscaras que são, ao mesmo tempo, modernas e primitivas. Neil Gaiman (em sua série Os Eternos, 2006-7) cometeu o despautério de fazê-los falar... querendo que seus pensamentos estivessem acima dos mortais, fez com que pensassem formas vagas/ intraduzíveis/ superiores, como “palavras de Schrödinger”, oscilando nas brechas dos termos humanos. Abriu a porta para uma sucessão de medíocres colocarem diálogos onde não deveria haver.
As Caixas Maternas apenas fazem “pings”. A Fonte opera por caminhos tortuosos, e quando usa palavras, são breves, e seus desígnios, impenetráveis. Ela mesmo é fisicamente impenetrável, mesmo para seres superiores.
No silêncio, está o enigma. O que está acima, além e na origem de todas as coisas. E na verdade da alma de alguém que está à procura de si mesmo no Deserto.
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