O escocês Grant Morrison fez parte, depois de argumentistas como Alan Moore e Neil Gaiman, e desenhistas como Brian Bolland e Alan Davis, daquilo que chamaram de Invasão Britânica nos quadrinhos norte-americanos.
E é importante marcar sua estranha e dúbia relação com Alan Moore, que constantemente o acusa de plágio. Há um fundo de verdade nisso.
Em muitos momentos Morrison volta a lidar com material criado pelo Moore, e de uma forma que, se não é exatamente parasitária, tampouco prima pela invenção. Isso fica claro, por exemplo, na breve história que faz, junto com o desenho brilhante de Joe Quesada, para a edição anual de All-New Miracleman Annual #1 (2014), como querendo firmar-se no panteão onde já estavam Moore e Gaiman, responsáveis pelas fases anteriores do personagem.
Seguindo o clássico A Piada Mortal (Alan Moore e Brian Bolland, 1988), faz o pretensioso Asilo Arkham (1989), com maravilhosas ilustrações de Dave McKean, em uma edição luxuosa, com uma enxurrada de referências, citações e alusões a coisas tão diversas como Einstein, Jung e mitologia nórdica. O futuro lhe foi justo e o pôs no devido lugar. Se A Piada Mortal ainda é uma obra-prima de síntese, de uma história poderosa e clara, de terríveis implicações do que o Coringa fez com Bárbara Gordon (que é óbvio, mas nunca dito), Asilo Arkham é uma revista bela e datada, sem maior longevidade.
É Morrison um escritor brilhante, com grandes idéias, a algumas das histórias mais bonitas já feitas nos quadrinhos (em algum momento nos dedicaremos a elas). Porém é comum perder-se em concatenações engenhosas da cultura pop, Física Quântica, História e de tudo que conhece (lembrando Moore), porém de maneira alucinada, e sem um conteúdo real. Ele se esquece de que não está apresentando uma teia de referências, e sim uma história, onde queremos nos importar com os personagens. Na mão dele o mosaico se estilhaça em um caleidoscópio.
Em alguns momentos, esse é mesmo o conceito, o de um hipertexto, que infelizmente vai em detrimento da história, como ocorre em Sete Soldados da Vitória (2005-6).
Sua velocidade alucinada, sua vontade de mostrar tudo, mostra o quanto é sagaz, o quanto pode fazer conexões e ressonãncias, simplesmente impedem que nos importemos com os personagens. Esvazia os sentimentos que estão ali esboçados, ou estão em semente.
Vamos tomar aqui uma sombra, um reflexo, uma irradiação de Watchmen, chamado Pax Americana (2014). Esta revista, desenhada por Frank Quitely (e ainda Nathan Fairbairn) história acontece dentro de um projeto ambicioso, bem executado, porém também vazio, chamado Multiversity (2014-5), onde Morrison tem permissão para brincar com o Universo DC. Ele continua uma espécie de Universo DC Paralelo que ele criou e vai infiltrando na continuidade, um material genético criativo próprio infuso naquela editora. Começou já com sua versão do Homem-Animal (1998-90), e continuou nos anos subsequentes: com Liga da Justiça da América (1997-99), DC Um Milhão (1998), All-Star Superman (2005-8), Sete Soldados da Vitória, Batman (2006-10), Crise Final (2008-9), Superman Beyond (2008-9), Batman & Robin (2009-11), Batman – o Retorno de Bruce Wayne (2010-11), Batman Inc. (2011-3), Action Comics (2012-3)... Cada nova história ou título que fazia, sempre tentava conectar. Com permissão para tentar organizar o conjunto das histórias, criou para DC Comics o arcabouço geral de um novo Multiverso. Mas suas concepções não foram levadas adiante por outros autores (ao contrário dos insights de Moore que, ainda que pontuais, se mostraram incrivelmente fecundos: um conjunto de histórias que fez para a Tropa dos Lanternas Verdes foi o material base para Geoff Johns desenvolver anos de bem-sucedidas histórias desses personagens, décadas depois). Multiversity sinceramente me parece, com exceção de algumas boas idéias, desprovido de magia e chega a ser parasitário em alguns momentos.
Em Pax Americana tudo está envelopado pelo brilhante trabalho visual de Frank Quitely (que desenha cada vez melhor). E nele Morrison cria sua própria versão de Watchmen (1986-7), de Moore e Dave Gibbons.
Algumas Preliminares
Para entender a série é preciso algo prévio.
Uma das muitas editoras que se arriscaram no ramo dos super-heróis, a Charlton Comics teve seus personagens adquiridos pela DC Comics em 1983. Um dos efeitos, e motivos, do mega-evento Crise nas Infinitas Terras foi organizar essa vasta cartela de personagens, de seu próprio passado e adquiridos de outras editoras (como a Fawcett Comics). Nessa história, tais personagens foram apresentados como de uma dimensão paralela, e depois integrados ao continuum do Universo DC. Os personagens que nos interessam aqui são: o Capitão Átomo, o Questão, o Pacificador, o Besouro Azul, Sombra da Noite (Nightshade, no original) e Thunderbolt.
Alan Moore apresentara à DC Comics a idéia de uma mini-série em torno de tais personagens. A editora, com medo do que poderia ocorrer com eles, de comprometê-los, rejeitou a idéia. Então Moore usou-os como base para novos personagens. O Questão daria lugar a Rorschach. Sombra da Noite, a Espectral (Silk Spectre). O Capitão Átomo inspirou o Dr. Manhattan, e o Pacificador, o Comediante. O Besouro Azul (personagem com mais de uma encarnação na Charlton) foi a base do Coruja, enquanto Ozymandias foi levemente inspirado em Thumderbolt.
A ironia é que a DC nunca fez nada que prestasse com os personagens da Charlton. Ensaiou uma abordagem interessante com o Capitão Átomo (argumento de Cary Bates e Greg Weisman, e desenho de Pat Broderick, em 1987), junto ao esforço de rejuvenescer personagens, com a Mulher Maravilha de George Pérez, o Batman de Miller e Mazzuchelli, e o Super-Homem de John Byrne.
Como se isso não bastasse, os personagens de Watchmen acabaram por inspirar aqueles da Charlton. As “cópias” se tornaram mais ricas e importantes que os originais. O Questão, por exemplo, fora inventando por Steve Ditko, que repetiu o conceito em outro personagem, chamado Mr. A. Rorschach baseia-se e desenvolve estes dois. Tão interessante era que o Questão, em especial na maravilhosa série Liga da Justiça Sem Limites (2007-10), absorveu traços de Rorschach – no caso, sua paranóia por conspirações
A partir disso Grant Morrison criou sua Pax Americana. Os personagens da Charlton, agora da DC Comics, servindo-se da inspiração de Watchmen.
Outras preliminares dizem respeito ao argumentista, Grant Morrison.
Morrison é obcecado pela idéia de distintos planos de existência, não paralelos, mas escalares, como na antiga compreensão do microcosmo e do macroantropos. E, desde muito cedo, entende que a relação quadrinhos (ficção) e leitor (realidade) é uma expressão dessa conexão entre planos, sendo o plano do leitor um plano superior de existência. Isso está muito explorado em Homem-Animal, sendo na realidade o sentido final, a revelação e culminação, de suas histórias, e ganha sua expressão mais bonita na história O Evangelho do Coiote (The Coyote Gospel, Animal Man #5, dezembro de 1988).
Em outro momento da mesma série, vincula à teoria da ordem implicada, de David Bohm.
Em Liga da Justiça da América, e depois Action Comics compreende a Quarta Dimensão, de seres como Mxyzptlk. Depois ele ainda situou ali o gênio de Johnny Thunder, junto com o diabrete das antigas histórias de Aquaman, Quisp (depois, Qwsp), e criou algumas boas histórias também.
Dito isso, comecemos.
A História
A história é contada fora de ordem cronológica. E a ordem de exposição é parte de seu conteúdo mais profundo, ao qual retornaremos.
Posto em ordem: Vance Harley é um desenhista de história em quadrinhos e também o vigilante Yellowjacket (primeiro herói da Charlton Comics, é o nome em inglês de um tipo de vespa, sem uma tradução fácil). Seu filho pequeno entra em seu escritório/ ateliê e, de posse da arma do pai, e sem saber do alter-ego heróico, acaba matando-o com um tiro na cabeça. Isso o abala profundamente. Em uma das muitas visitas ao túmulo do pai, Harley (de quem nunca sabemos o nome) recebe a visita do Capitão Allen Adam, o Capitão Átomo, do futuro, que lhe conta o segredo do Algoritmo 8, que permite compreender a estrutura por trás do aparente caos do mundo. E, com isso, mapear o futuro por completo.
Já como Governador, Harley convence o Capitão Allen Adam, depois do acidente que o tornou super-humano, a juntar-se a ele. A ser um super-herói e tornar factível seu plano; afinal, ele também conhecia o Algoritmo 8. Ao mesmo tempo, cria (aparentemente) o Instituto Pax, e nele o primeiro do que seriam os heróis do futuro, o Pacificador. Na sua identidade de Christopher Smith, tem como parceira (namorada ou esposa) Nora O´Rourke.
Terroristas (árabes) invadem a Casa Branca, no mandato de George Bush, mas o Pacificador debela o atentado e abre caminho para Harley chegar à Presidência dos Estados Unidos. Em 2008, apresenta para o país e para o mundo o que imagina como uma nova Era Dourada: os seus super-heróis, a Pax Romana, inspirados nos antigos personagens de quadrinhos, no mesmo momento em que o Capitão Átomo reconstrói as Torres Gêmeas.
Até que o Presidente é assassinato com um tiro na cabeça pelo seu próprio super-herói, o Pacificador. Tudo se desmorona. Christopher Smith é interrogado, em operação conduzida pelo Sargento Steel (outro personagem da Charlton, que aqui nunca é apresentado por inteiro; no original ele tem apenas a mão mecânica. Nesta versão é o braço, que lhe dá força acima do normal). O vice-presidente, pai de Sombra da Noite, assume a Presidência e, diante da reação pública contra os super-heróis, dá uma guinada na política de Harley, o Presidente mais popular da história do país, para algo mais “realista”. Nisso, quatro cientistas executam a tentativa de assassinato do Capitão Átomo, criando um buraco negro artificial dentro de seu crânio; sem que o resultado fique claro, Átomo se retira daquele Universo. (O buraco negro instalado artificialmente na cabeça do Capitão Átomo parece-se com o conceito inicial de Morrison para Xorn, o mutante com uma estrela no lugar do cérebro.) E Steel os executa, em uma espécie de “queima de arquivo”. Nora O´Rourke descobre o que é o Algoritmo 8, mas é assassinada também por Steel.
O Questão investiga esse conjunto de mortes que lhe parecem conectadas: a do Yellowjacket, a do Presidente Harley, a de Nora O´Rourke e dos quatro cientistas. E, nisso, descobrir o que é o Algoritmo 8.
Essa é a história. Em ordem cronológica, parece terminar em aberto. Como está disposta, fecha-se. E aqui entram os pontos fortes da revista.
Os Temas e os Reflexos de Watchmen
Uma das figuras centrais em Watchmen é a do Smile e a do relógio analógico, que se fundem várias vezes. Aqui, é a da interrogação e a do 8.
Podemos imaginar que o “soldado” seja o 8, e o “corcunda”, a interrogação, embora a metáfora, de Aleister Crowley, que dá título a um livro seu, refira-se aos pontos de interrogação e de exclamação
(Devo essa referência a Daviz Uzumeri - https://comicsalliance.com/multiversity-annotations-part-4-morrison-quitely-pax-americana/ - que se encarrega de encontrar referências para essa obra, sem, porém, articulá-la em um conjunto maior e, na minha opinião, deslumbrando-se com o sofisticado jogo de espelhos que Morrison cria).
Outros números aparecem, evocando também Watchmen, e com significados importantes para esta história. Comecemos do Um. O tema da bala, do tiro, é análogo ao da explosão em Watchmen: a bala na cabeça do Presidente e de seu pai, o Yellowjacket, como o buraco negro posto na cabeça do Capitão Átomo (no que pasrece ser um acelerador de partículas ou aparato similar). E o revólver, em modo geral.
Ora aparece a imagem do revólver, ora do buraco, expresso ainda com a espiral (típica, por exemplo, dos canos de armas de fogo).
No caso do Capitão Átomo, há uma ironia figurativa: os autores incorporam o símbolo do Dr. Manhattan (o átomo de hidrogênio) em sua testa. Mas aqui o círculo alude a outros significados, e à idéia do tiro na cabeça, e do buraco negro instalado no interior de seu crânio.
Além dos tiros, temos o círculo, em especial de um buraco negro (não automaticamente o fenômeno cósmico).
No primeiro caso, é o ponto de um “i”, na capa de uma revista. Na segunda seqüência, é o charuto que aparece como tal, e o personagem (o Sargento Steel aparece como o Comediante, com seu charuto, eliminando pessoas a serviço do governo).
E o revólver.
Há uma constante referência ao Dois, que veremos adiante. E em menor grau ao Três, dado pelos três pontos em triângulo, cujo sentido geral nos escapa (outra dívida com David Uzumeri).
Um outro tema importante é o da Paz, expresso como dois símbolos distintos: a pomba e o ícone inscrito no círculo, criado em 1958 na Campanha pelo Desrmamento Nuclear, na Grã-Bretanha, e adotado com esse sentido mais amplo logo depois.
Intencionalmente se inverte a atmosfera de Watchmen: lá onde tudo era desespero, vidas humanas trituradas à iminência da guerra nuclear (e cujo desenlace foi, embora com um nobre propósito, ainda mais medonho), aqui a história quer irradiar otimismo e esperança.
A pomba reaparece várias vezes. É o símbolo do Pacificador. Substituiu a águia americana, sob o mandato de Harley como Presidente. São soltas (e abatidas?) por Nora O´Rourke e Christopher Smith. São criadas por Vince Harley, e voam quando ele é acidentalmente morto pelo filho. Harley, ameaçado por terroristas, lembra que seu pai as criava, e que ele também tinha as “suas”, no caso, o Pacificador. Uma pomba (ou ave parecida) devora um inseto (não um yellojacket, mas uma libélula de grandes asas douradas, que lhe alude) durante o passeio de Adam e Harley no parque.
Mas é o ícone da Paz que permite que em vários momentos Morrison e Quitely brinquem com o relógio, assim como em Watchmen. Se lá os ponteiros que se aproximavam à meia-noite marcavam a contagem regressiva, aqui sempre que os relógios analógicos aparecem, é para, em alguma engenhosa combinação, não raro usando a “sarjeta”, o espaço entre os quadrinhos, como parte da composição.
Os ponteiros dos relógios sempre assumem tais posições. Como não são três, capaz de formar o símbolo, ora se vale de algum elemento intermediário (a “sarjeta”), ora, em seqüência, como em uma animação.
O presidente forma uma liga de super-heróis, a Pax Americana, com trajes simples e luminosos, como nos quadrinhos (em especial os da Era Dourada, época do Yellowjacket no mundo real, e de seu pai como autor naquelas histórias). Simbolizavam uma nova era de esperança e inocência. Em Watchmen, essa Era Dourada fora efetivamente nos anos 30 e 40, e declinara amargamente nos anos 50 e 60. Aqui, é algo da primeira década do século XXI, terminada abruptamente com o assassinato de Harley. A crise dos heróis, seu ódio pela população, não ocorre nos anos 60, mas naquele momento. O heroísmo não é visto de maneira cínica como em Watchmen, onde mesmo o ato final de Veidt é compreendido como inútil e a perdição de sua alma; o heroísmo é um retorno a uma inocência bem-vinda e finda com o sacrifício de Harley. Dá-se a entender que haverá uma ressurreição (que nunca ocorre, e apenas é indicado em alguns momentos).
Jacqueline Kennedy referiu-se à presidência do marido morto como Camelot, que nunca se repetiria em Washington novamente. Essa expressão se imortalizou, e ficou como uma aura de sonho e luz em torno de um mandato truncado. Esse é o espírito em que navega a história de Morrison, e o Presidente Harley parece querer fazer sua Távola Redonda própria, garantindo que seria assim lembrada, como uma Camelot, por uma fatalidade idêntica à primeira.
O vice-presidente vê sob outro ângulo esse retorno ao passado: como um regresso à infância. Diz que “nós vendemos os sonhos de crianças para adultos medroso” (“we sold the dreams of children to fearful adults”), temerosos pelo futuro. A rigor, estava certo, já que a inspiração de Harley veio dos persoangens do pai, embora o sorridente e carismático líder escondesse o trauma da infância e o desejo de punição pelo seu crime medonho, o parricídio (o futuro que masta o passado), ainda que não intencional.
Os paralelismos com Watchmen se amontoam. Assim como Manhattan ajudava na nova tecnologia, nas baterias elétricas, este Capitão Átomo estava auxiliando o governo americano na criação de um buraco negro artificial. Ele desmonta o seu cachorro (como Manhattan faz com equipamentos) para então perceber que matou o animal. Criou um cachorro idêntico, sem sucesso; era idêntico, mas não era o mesmo. Como o Dr. Manhattan, dissecava os objetos para entender, inclusive os seres vivos (que o original não fazia) e, preso ao milagre termodinâmico, ao caráter irreversível da vida, podia até criar um ser vivo similar, sem poder fazer a morte voltar atrás.
O Questão e sua investigação paranóica, certeira, espelha a de Rorschach. Na reunião de Sombra da Noite com sua mãe, evoca um encontro idêntico, assim como a foto do time unido – lá, dos Minutemen, aqui, da nova Pax Americana.
O Algoritmo 8
E possui um loop, que é a própria imagem-tema da história: a fita de Moebius (de August Ferdinand Möbius), que também pode ser entendida como o símbolo do Infinito ou simplesmente como o 8.
A revista abre com um assassinato. Em Watchmen, é o do o Comediante. Aqui, do Presidente Harley, em explícita relação com o assassinato de John Fitzgerald Kennedy. O símbolo que vemos é o do 8: na bandeira queimando, no anel do morto e o sangue escorrendo.
(Aqui há outra alusão. Em Watchmen, Veid suspeita, ou dá entender que acredita, que o Comediante fora o responsável pelo assassinato de Kennedy. Neste caso, é o Pacificador, sua versão mais direta.)
Mas esse assassinato é visto de trás para frente, quadro a quadro, até vermos o responsável.
Como 8 é recorrente da história, o grid dos quadros não é do de 3x3 de Watchmen, mas o de 4x2 – ou seja, 8. É uma grade menos rigorosa, e que serve como base geométrica para todas as páginas.
Se a revista começa com a morte do Presidente, termina com a morte de seu pai, e com o garoto começando a jornada. Vai de trás para frente, a última cena explicando a primeira. A história se completa ali, e somente assim, narrada dessa forma (tanto que aparece truncada, quando contada linearmente).
O Questão, nesta história, transcendeu o maniqueísmo, o arranjo binário, do Bem e do Mal, do preto e o branco, que Ditko absorveu de Ayn Rand. Aqui o personagem tem um espectro maior com a qual abordar os problemas (“I take a full spectrum approach to problems”), onde reconhece cada indivíduo e situação, e o sentimento que os anima, e apenas a partir daí age. Ele cita a Teoria da Dinâmica Espiral, que argumenta uma escalada de desenvolvimento humano e social em oito etapas. Saímos da dualidade para o oito. (Devo também essa observação a Uzumari). Esta concepção, no entanto, não parece ter maiores repercussões no conjunto da história.
Mas o 8, a fita de Moebius, se orienta em dos pólos, e estes permitem uma outra reinterpretação dos temas de Watchmen: no caso, do tempo. O Dr. Manhattan estava em todos os tempos: o Capitão Átomo também. Mas este é compreendido como o Passado e o Futuro, como esses dois lados. E somos introduzidos à figura do deus romano Janus.
A última história de Vince Harley, o pai do Presidente, tinha a figura de Janus the Everyway Man. Desta, e da figura do deus romano, Nora O´Rourke (que é quem diz que “Janus was the guardian of doors and gates in Ancient Rome”) tomou como inspiração para uma escultura, o busto da divindade. O mesmo busto foi usado por Steel para matá-la. Enquanto contava isso para Christopher Smith, ele lhe pede que esqueça o passado (“So forget the past.”), no que ela responde que o faria “se tivesse o algoritmo definitivo, eu estaria vasculhando o futuro para inspiração” (Sure, if I had your ultimate algorithm, I´d be searching the future for inspiration). O arranjo dessas duas páginas reflete a simetria.
Essa simetria das páginas é vista pelo Capitão Átomo (vista literalmente: ele está lendo a revista, onde aparecem tais cenas). Aqui ele diz:
– Eu vi um bóson sem massa simétrico no tempo. Uma fita de Moebius se curvando através de oito dimensões. (I caught sight of a massless time-symmetrical boson. A Möbius loop curving through eight dimensions.)
Na Física Quântica há uma simetria entre as partículas elementares. Richard Feinman, por exemplo, defendia que anti-matéria nada mais era do que as partículas da matéria, apenas que correndo para trás no tempo. Aqui se alude aos táquions, a partículas hipotéticas derivadas da Física Relativística: se as partículas comuns, abaixo da velocidade da luz, viajam do passado ao futuro... se os fótons, na velocidade da luz, estão “suspensos” no tempo... então, por uma questão de simetria, quaisquer partículas que viajassem acima da velocidade da luz retrocederiam no tempo: seriam os táquions. Eles jogam um papel importante em Watchmen. Assim como a simetria, que é o conceito/ imagem relacionado com Rorschach (e a linda citação de William Blake) e as sombras dos amantes. Aqui Morrison funde-as à concepção presente do Tempo, do deus Janus, a Física Quântica, e ao centro mesmo da história.
Harley conclama Adam a ajudá-lo no seu plano, para “recuperar simetria a um mundo partido” (and restore symmetry to a broken world). Por isso ainda que reflexo/ reflexão é uma palavra constante. Nesse encontro no parque, Harley se confessa fascinado pelo capitão Allen Adam, pelo passado ser lhe apenas um lugar – o tempo transformado em espaço –, dizendo que: “veja, refletindo, meu plano era impossível” (See, on reflection, my plan was impossible”), até a aparição de Adam.
Aqui existe o verdadeiro loop da história: o Governador Harley convence Allen Adam a se tornar o Capitão Átomo que, regressando no tempo, conta ao jovem Harley, no túmulo de seu pai, o segredo do Algoritmo 8, isto é, da previsão do futuro.
(Átomo se confunde com os tempos. Ele, no encontro com o então Governador Harley, disse que antes conversara com ele na condição de Presidente. Cronologicamente, seu primeiro encontro foi no túmulo de Vince Harley).
Harley conta que tivera essa revelação no cemitério, na lápide do seu pai. Apenas não contou, de imediato, que lhe for a revelado pelo mesmo Átomo, aquele que era o algoritmo definitivo, “o padrão que explica tudo” (the pattern that explains everything). Com ele fizera fortuna, capaz de prever o futuro. Essa conversa ocorre enquanto passeiam em um jardim. Reconstituindo o trajeto, eles percorrem um círculo.
Quando Átomo retrocede no tempo e se encontra com Harley no cemitério, diz: “a porta tem um lado e abre em dois sentidos” (“the door has one side and opens both ways”). O tempo é sempre traduzido sob essa forma da direção dupla, e do seu eterno retorno. A porta aberta permite que se vá aos dois lados, que o futuro influencie o presente. No caso, a cinta de Moebius ficcional ocorre com o retorno de Átomo. Ao contar sobre o Algoritmo 8, o futuro por inteiro se desdobra e se revela para o jovem Harley. O futuro, como um feedback, vai ao passado, e o modela. Estando o futuro no passado, a figura do 8 é o tempo fechado, ainda que entrelaçado – tudo está previsto e congelado, inclusive o momento em que o futuro tangencia com o passado.
Existem lampejos em outros momentos.
Quando Steel assassina os cientistas, diz que eles, irresponsavelmente “abriram as portas do inferno” (“you opened the gates of hell”), ecoando o sentimento apocaliptico que recaiu sobre o mundo, em Watchmen, quando o Dr. Manhattan partiu da Terra. E, em outro nível, o sentimento de remorso dos responsáveis pelo Projeto Manhattan e pela bomba atômica.
No momento de matar o último, afirma: “a grande explosão é o que vem ao final”. Retorna a idéia do tiro, mas sobretudo no trocadilho de que o “big bang”, nome dado pela origem conhecida do Universo, é o final (no caso, da vida do cientista).
Conversando ao telefone, na casa de sua mãe, diz Sombra da Noite: “a vista é a mesma em ambas direções” (“the view is the same in both directions”).
Ou ainda: Sombra da Noite possui um perfume próprio, com sua assinatura, o Futurebomb. Em Watchmen, era Adrian Veidt que tinha sua própria linha de perfume: a Nostalgia. É o simétrico oposto inclusive no que representam: em Watchmen, uma atmosfera pesada, de falta de um medo do futuro imediato, que fomentava essa fuga nostálgica ao passado. Nesta, um engajamento com um futuro promissor, tornado ainda mais brilhante pela gestão luminosa de Harley, com seus super-heróis, a reconstrução instantânea das Torres Gêmeas, e a ênfase na paz, inclusive a partir de um discurso de Kennedy: “que tipo de paz nós procuramos? Não uma Pax Americana imposta ao mundo por armas de guerra americanas...” (“what kind of peace do we seek? Not a Pax Americana enforce on the world by american weapons of war…”). Veidt cita um discurso de Kennedy, onde ele fala nos “vigilantes”, watchmen.
Isso se repete em outros momentos, e veremos como isso impacta na arte seqüêncial.
A Narração
Existem grandes momentos da experimentação gráfica, da arte seqüencial, que vai de mãos dadas com as idéias da história.
Os temas visuais aqui se repetem. A espiral centrada em Christopher Smith, o círculo luminoso posto ao centro do arranjo simétrico, o rosto do vice-presidente cindido, em uma face iluminada e outra obscura.
O círculo se repete, em uma mesma imagem que divide a ação em takes, dentro do grid. O curioso está no reflexo na água. Os diálogos seguem a leitura normal, mas não as imagens, que formam um ritmo diferente.
Esta é uma pequena obra-prima. A narração segue o ziguezague da escadaria, e o movimento físico dos personagens, que também se organiza na forma dos quadros. Em pelo menos três momentos, esses volteios temporais aparecem. Sombra da Noite acusa o pai de sempre retroceder em tudo que diz (“você sempre volta atrás em tudo que diz, pai!”). Por sua vez, ele está preocupado com o retrocesso: “tudo irá no sentido contrário”, se não detiverem o que julga ser um declínio do Império Americano (o mesm tema da Pax Americana, talvez pela postura pacifista do seu antecessor morto). E, diante da necessidade de uma saída para a situação criada pelo assassinato, a revolta popular contra os super-heróis, ela indaga: “você diz um retorno ao passado?”, a uma política “old-fashioned”. (Reflexão, reflection, também força sua aparição aqui.) Essa página começa com a transição da página anterior, de ambos entrando por uma porta e, no último quadro, saindo do prédio por outra porta. Inicia-se com o pai falando “uma porta se fecha, Evie... e outra se abre” (One door closes, Evie.. another opens.”).
Este é outro grande momento. No arranjo geral, três linhas de tempo se intercalam, no mesmo espaço físico: a conversa entre Nora e Smith; o assassinato de Nora e a investigação do Questão sobre essa morte. (Em Watchmen, isso aparece em alguns momentos: Coruja e Rorschach conversam com Ozymandias na Antártica, enquanto vemos cenas em Nova Iorque, e imagens do passado, do assassinato do Comediante). Tudo isso num arranjo simétrico (são duas páginas), centradas pela estátua da Paz, e, acima, do busto de Janus (uma face apenas aparece... a outra não tem como, já que o busto fora usado para matar Nora O´Rourke, aparecendo no canto inferior direito).
Quando o Algoritmo 8 é revelado a Harley, os quadros deixam de ser desordenados e se organizam, revelando cada mínimo detalhe da vida humana e, ao mesmo tempo, os padrões (aqui, figuras elementares, imagens arquetípicas) subjacentes. Até ele alcançar o esclarecimento.
Para mim, o ponto alto é o momento em que tentam assassinar o Capitão Átomo e ele parte daquele Universo (análogo à retirada do Dr. Manhattan da Terra rumo a Marte). Ele tem uma revista em quadrinhos em mãos. A capa revela que é a Ultra Comics, uma revista que atravessa todas as histórias do Multiversity, de Morrison. Mas ele comenta da simetria das páginas... Exatamente das páginas da revista que nós, leitores, estamos lendo: Pax Americana. Aqui, em uma única página, várias idéias se sobrepõem, em camadas.
Primeiro, da idéia de que os quadrinhos são uma barreira e janela entre planos, o plano ficcional e o do leitor.
Em Multiversity, essa concepção se aplica também na horizontal: cada revista é a realidade de um Universo, que aparece como ficção em outro. Como mensagens interdimensionais em “garrafas”. E que os vilões acabam usando para se comunicarem.
Ainda, Átomo diz que é uma analogia para planos verticais, de dimensões físicas. Os seres tridimensionais vêem seres bidimensionais impressos nos quadrinhos. Ele, quadridimensional, os vê de maneira análoga. E ainda vê não apenas os atos, mas as intenções, os pensamentos (os balões de pensamentos) e as identidades secretas (que só o leitor conhece) dos personagens.
Quarto, que os leitores reais (nós) somos parte da cena, na medida em que ela olha diretamente para o leitor no último quadro.
Por último, que os quadrinhos são falsamente lineares. A página mostra, de uma só vez, uma série de acontecimentos, que ele pode folhear no sentido inverso, e pode saltar de um lado a outro. O leitor de uma revista se vê numa situação não muito distante, portanto, a do Capitão Átomo diante do tempo: as páginas podem correr em vários sentidos.
O que está atrás? Não está claro. Parecem-nos quadrinhos. Podem ser monitores. Aludem a uma imagem recorrente em Multiversity, que é a do cubo mágico, o cubo de (Erno) Rubik.
O então Governador Harley fornece a Allen Adam histórias em quadrinhos, a mitologia daqueles tempos. O deus, “indestrutível e autista”, como é dito, pergunta se será uma história diferente, nova, por vez. Responde Harley: “toda boa história é” (“every good story is”). Lendo e relendo, em sentidos diversos, a mesma história se torna suporte para várias interpretações e possibilidades.
Uma Conclusão
Existem boas idéias. Brilhantes até. Mas todas parecem ser o que são: desenvolvimentos de conceitos de Watchmen, quando não referências, reflexões, ironias, homenagens. Existe, sim, uma maneira engenhosa de apresentar uma nova interpretação do Tempo, que estrutura a ordem da história, sua simbólica e a organização das páginas.
Existe um sentimento real escondido na história, da qual vemos lampejo, mas o desvairio de Morrison não nos permite explorar. Quem os resgata, em alguma medida, é Frank Quitely. Mas pára por aí.
Watchmen não é somente feito de elos entre pedaços aparentemente distantes da filosofia, ciência, arte e cultura pop. É um equívoco considerar que Moore está apenas brincando de desconstruir gêneros e convenções (como a revelação final do vilão, ou o final feliz).
Os Contos do Cargueiro Negro não são apenas uma homenagem à maravilhosa época da E.C. Comics, e seus quadrinhos de terror – tanto que Joe Orlando, um de seus desenhistas na vida real, é o autor da obra imaginário – como uma analogia para se compreender melhor a situação em Watchmen,
O Dr. Manhattan não é somente uma síntese de inspirações de Santo Agostinho, Descartes, Laplace e Einstein; ele é um personagem que, apesar de parecer divino, é humano, e sente, com mais intensidade que todos os demais, o enigma do Universo e o problema do livre-arbítrio.
Rorschach não é um nexo onde convergem os testes psicológicos, às várias ilusões à simetria, os personagens de Ditko e as idéias deste autor, influenciadas por Ayn Rand: é um ser humano atormentado, e através dele entramos no abismo, e nos perguntamos: e se estivermos, de fato, sós no Universo? E se tudo que ocorrer em nossas vidas for de nossa inteira responsabilidade, se o Bem e o Mal forem a substância mesma de nossas decisões.
Nos identificamos com todos eles, em alguma medida, porque são expressões das potencialidades de cada ser humano, e porque todos nós somos, e podemos ser, cada um deles. Ao menos nos momentos expressos ali.
Moore conta uma história. Conta várias histórias dentro de uma só. E seus personagens são humanos. Os sagazes artifícios narrativos não existem por si. Eles são instrumentos para contar uma história, amalgamados com seu espírito e conteúdo.
Diante disso, Pax Americana é apenas um jogo frívolo de referências. Muito inteligente. E com potencial para ser mais. Mas apenas um jogo astuto e frívolo. Como, infelizmente, outras tantas coisas de Morrison.
O risco das histórias de Morrison é que deixem de ser apenas histórias, e sejam alegorias.
Em uma alegoria, cada elemento que vemos não significa ele mesmo, mas uma outra coisa. A pomba que aparece em certas cúpulas de Igreja jamais é um pássaro, mas o Espírito Santo, indescritível, e simbolizado sob a forma mundana, e viável pictoricamente, da pomba. N´A Flauta Mágica de Mozart, o comportamento de Tamino é inconciliável com o de ser humano. Contudo ele simboliza o percurso da alma, dentro das crenças maçônicas, sim. O comportamento de Aslam, em Nárnia, só faz sentido se pensarmos que ele é Cristo, em outra forma. E somente assim. O mesmo vale para o Parsifal, de Wolfram von Eschenbach, como para a Divina Comédia, de Dante Alighieri.
Não é uma camada a mais que a história ganha. Ela não ganha mais um significado. Ela troca o aparente pelo oculto, mas ainda tem apenas um significado. Dentro de um vocabulário dado, como no Cristianismo ou na Maçonaria, seria ainda compartilhado por vários. Se é uma simbologia própria do autor, o jogo piora, porque não se trata de criptografar uma mensagem para os sábis ou eleitos, mas torna-se um xadrez mental, onde a leitura “profunda” é entender o que o autor quis dizer, em uma versão empobrecida do Ulisses, de James Joyce.
E aqui existe algo maior. Boa parte dos quadrinhos das últimas décadas, da produção de seus autores mais brilhantes e desenhistas mais talentosos, deixou de ser um diálogo, acrescentando novas possibilidades a velhas histórias e personagens, para ser um conjunto denso de referências. Torna-se cansativo o sem-número de versões do Super-Homem que existem, ou como, nas dimensões paralelas da Marvel e DC Comics, aparecem homenagens/ referências/ paródias a personagens da editrora rival. O que aparece como uma história maravilhosa com o sabor das histórias de ficção científica e terror do séc. XIX e pulp das primeiras décadas do séc. XX, na primeira série da Liga Extraordinária (1999-2000), de Alan Moore, se transformou numa avalanche desenfreada de referências, num samba do mago anarquista inglês louco, nas últimas mini-séries. Planetary (1999-2009), de Warren Ellis e John Cassaday, era saboroso porque além da linda homenagem que fazia àquelas mesmas histórias, criava personagens e situações únicos e novos. Mas a Sociedade dos Super-Heróis (2014), de Grant Morrison e Chris Sprouse, é mais vazio, e tem algo de vampiresco ao escolher o mesmo desenhista das revistas Tom Strong (1999-2006), que tinham essa mesma proposta de revisitar os pulp... e de autoria de Alan Moore (sempre Moore).
Pax Americana é, como outras revistas, um delicado e complexo jogo de espelhos, onde as imagens respondem umas às outras, sem novidade efetiva, e onde o original se perdeu, restando às imagens subsistirem apenas por força de sua reflexão sem fim.
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