Quando a lei americana da Liberdade de Informação expôs em 1977 os documentos do projeto MKUltra, no qual a CIA realizou todo tipo de experimentos de controle mental, soube-se que aquele material era simplesmente o resto de uma grande destruição de documentos perpetrada em 1973 – coincidentemente, o mesmo ano em que ocorreu a retirada dos soldados americanos de solo vietnamita. Todas essas informações aliadas à contracultura da época confluiram em teorias da conspiração que uniam as experiências de controle mental com o exército americano principalmente durante a guerra mais criticada pela juventude da década de 70.
Esses fatores dão o pontapé inicial a Alucinações do Passado (Jacob’s Ladder, 1990), tradução que aponta para os efeitos de um estresse pós-traumático na experiencia de vida do personagem principal, Jacob, ex-soldado ferido em combate durante um ataque à base de Mekong Delta em 1971. Mortalmente ferido com uma baioneta em seu abdome, o personagem acorda da lembrança traumática em um metrô, com o livro “O Estrangeiro” de Albert Camus em seu colo. Um cartaz de propaganda no vagão diz que “Nova Iorque pode ser uma cidade louca, mas você nunca morrerá de tédio, então aproveite”, enquanto uma campanha antidrogas exibe a palavra INFERNO (HELL) em letras garrafais. Solitário na estação, Jacob perambula em meio ao cenário urbano sombrio cheio de perigos latentes, e acaba sendo quase atropelado pelo trem 3182 que passa carregado de almas que o observam pelas janelas. Ao longo do filme irão se descortinar citações diversas referentes à Bíblia (a começar pelos nomes dos personagens, que significativamente partem de Jacó e Jezebel para Eli, Miguel, Paulo, Sara…), e a trama conspiratória coloca o personagem entre o estudo de demonologia e as informações confidenciais referentes a uma droga utilizada pelo exército para criar supersoldados, intitulada “a ladeira” (the ladder).
Em “O Estrangeiro”, livro que aparece repetidamente ao longo do filme, Albert Camus extravasa existencialismo dentro de sua linha fundamental de pensamento, traçando o absurdo através da narrativa do personagem Mersault após o enterro de sua mãe. A aparente falta de objetivos e o foco nas experiências sensoriais através de um roteiro fragmentado, tal qual a filosofia de Mersault através de Camus, é um guia para Alucinações do Passado – com a mão por vezes consistente e por vezes escorregadia do diretor Adrian Lyne. O contorno que se forma, por fim, vai muito além do que o título nacional propõe, enquanto o título original “A Ladeira de Jacó” (Jacob’s Ladder) engloba com precisão a trama de símbolos que o filme realiza. Tradução, inclusive, é o contexto primordial aqui: no mundo acadêmico o filme é prato cheio para os estudantes da intersemiótica de Roman Jakobson – tal e qual Blake é um conhecido referencial para a tradução entre poesia e imagem com seu “Matrimônio entre o Céu e o Inferno”, Alucinações do Passado é um forte representante para a tradução de um contexto cultural de linguagens múltiplas para o sistema de signos cinematográfico, onde o purgatório da Bíblia se reescreve com tons da literatura de Dante, das gravuras de Gustave Doré e das pinturas de Francis Bacon sob uma roupagem urbana e onde a guerra para os soldados funciona simbolicamente como um purgatório em si.
Como resultado cinematográfico, embora não seja um precursor no que tange ao horror psicológico – com foco nos temores que brotam da mente do personagem e sob sua perspectiva única, não além – Adrian Lyne conseguiu criar um clássico atemporal e fez escola nas suas escolhas acertadas de ambientação: um metrô abandonado, um hospício decadente, uma mesa de cirurgia. Tudo isso sob uma certa luz, sob um certo olhar, compõe o horror mais humano que a modernidade conseguiu construir. O já percebido eterno retorno à obra não resultaria diferente nestes tempos de um cinema exclusivamente mercadológico: um remake (sob a direção de David M. Rosenthal) está em pós-produção exatamente agora.
A Centrália de Jacó
A cidade fantasma de Centralia, na Pensilvania (EUA), queima em seu subsolo desde um incêndio iniciado em uma mina abandonada de carvão no ano de 1962. Rachaduras se abrem no chão ainda hoje e deixam vazar gases tóxicos que impossibilitam que a mesma volte a ser habitada. É como se o próprio inferno pulsasse sob o concreto da urbanidade esquecida. No ano de 1999 a Konami decidiu lançar um projeto de Keiichiro Toyama intitulado Silent Hill – um game que se basearia na cidade fantasma de Centralia para criar um sistema de terror psicológico pautado em um cenário ora silencioso e vazio, ora dominado pelas chamas do inferno. A inspiração para os ambientes, enquadramentos e para o clima geral que se buscava alcançar tinha um nome: Jacob’s Ladder. Cabe aqui reconhecer o poder de tradução de uma cultura, visto que Toyama e sua equipe lograram não apenas um resultado semelhante como, também, um digno representante do horror japonês que fervilhava naquela virada de século.
Essa tradução do cinema americano para o game japonês fez seu caminho de volta com o lançamento do filme Terror em Silent Hill no ano de 2006 pelas mãos do diretor Christophe Gans. Para os estudiosos da intersemiótica toda essa reviravolta seria difícil de mensurar, visto que ambos os sistemas de signos – cinema e games – apesar de diferentes, se sobrepõem e se misturam. Os trabalhos de direção, de iluminação, de câmera, todos estão presentes, de uma ou de outra maneira compondo uma mise-em-scène. No entanto, Martin Esslin (analisando a relação teatro/cinema em The Field of Drama, 1990) distingue signos denotativos e conotativos, sistematizando uma divisão que permite também a análise de mensagens latentes entre mensagens morais, políticas e filosóficas. Além disso, é claro que tanto o cinema quanto os games desenvolveram seus próprios métodos narrativos, e ainda que seus signos denotativos possuam as equivalências do audiovisual, são muito diferentes em sua semelhança pois trabalham para as especificidades de um todo completamente diferente em ritmo, interação e objetivo. E é isso que torna o filme de 2006 tanto um acerto quanto um erro.
Terror em Silent Hill possui um visual primoroso: a fotografia, as locações, os efeitos e o trabalho de câmera foram realizados de uma forma respeitosa e nunca antes vista em qualquer adaptação de um game original. É cinema hollywoodiano com investimento hollywoodiano, e com o trabalho de imagem coordenado por um conhecedor – Christophe Gans. Diretor de O Combate – As Lágrimas do Guerreiro (1995) – adaptação da obra-prima do mangá seinen Crying Freeman (Kazuo Koike / Ryoichi Ikegami) – e de Pacto dos Lobos (Le Pacte des Loups, 2001), este diretor é entendido em trabalho de câmera. Ainda antes desses dois marcos, Gans mostrou sua habilidade com o segmento “The Drawned”, primeiro conto do filme Necronomicon de 1993, realizando provavelmente a melhor obra audiovisual baseada em H.P. Lovecraft – seguido de perto apenas por Dagon (2001) e pelo episódio Dreams in the Witch-House (2005) da série Masters of Horror, ambos pelas mãos de Stuart Gordon.
Ainda que repleto de belas imagens, o filme acerta e erra ao acompanhar o ritmo do game. Excessivamente centrado na exploração do personagem e com poucos diálogos, a narrativa do filme caminha muito mais nos momentos em que acompanhamos Sean Bean no papel do pai da família “Da Silva”. Também como forma de acompanhamento desse ritmo, o filme procura resolver sua história em um segundo ato, o que deixa o resultado longo demais – delegando o primeiro ato especificamente para o deleite dos olhos e para a sensorialidade nativa da linguagem dos games, mas em detrimento do desenvolvimento da história. Aqui, “narrativa em imagens” é levado ao pé da letra e com maestria (o que mantém o filme até hoje deslumbrante), mas infelizmente sem muita profundidade no que se tem a dizer. Isso se percebe ainda mais quando observado em paralelo ao mar de signos que é a obra que começou tudo, lá no início dos anos 90, quando Jacó começou a descer sua ladeira para o fogo.
Sessão especial de natal do Cine Horror 21 de dezembro na Sala Walter da Silveira (Salvador/BA) – 18:30h. Versão sem cortes. Duração: 85min. Entrada: R$5,00. Uma realização Pig Arts / GoreBahia