(Amer, França, Bélgica/ 2009)
Direção: Hélène Cattet, Bruno Forzani
Roteiro: Hélène Cattet, Bruno Forzani.
Elenco: Cassandra Forêt, Charlotte Eugène Guibeaud, Marie Bos, Biancamaria D’Amato, Harry Cleven, Jean-Michel Vovk, Bernard Marbaix, Thomas Bonzani, François Cognard, Delphine Brual, Jean Secq, Béatrice Butler, Charles Forzani, Benjamin Guyot, Yves Fostier.
Duração: 90 min.
Lançado em festivais aqui no Brasil com dois títulos diferentes (Sofrido e Amargo).
"Amer" é um filme feito de olhares. E isso é claro desde a primeira cena, desde o primeiro frame da película, quando luzes e sombras deslizam pela íris da pequena Ana, com as notas de Bruno Nicolai (de "A Cauda do Escorpião") tocando como fundo musical, numa clara homenagem ao gênero Giallo.
Em princípio é o olhar não tão inocente de uma Ana-criança, com seus sete ou oito anos de idade, com seus passos incertos por cômodos e corredores sombrios de uma vila à la "Profondo rosso" (1975), com sua obsessão pelos buracos das fechaduras e por aquilo se passa por trás destes.
Em seguida vem a adolescência, impetuosa como as ondas que se quebram contra o rochedo no começo do segundo ato, quando nos é apresentada uma Ana-adolescente, o olhar seguro que revela a consciência de uma sensualidade virginal.
E por último, temos uma Ana-adulta, misteriosa quanto o passado que a obceca, que retorna ao local em que tudo começou para poder debruçar-se sobre os pesadelos da infância, o olhar amedrontado de quem viu algo horrível.
Três partes. Três idades. Três olhares.
"Amer" é também o primeiro longa-metragem do casal belga Forzani & Cattet, dois cineastas apaixonados pelo cinema pop italiano da década de '70 e, sobretudo, pela sétima arte enquanto meio de experimentação, como o demonstraram desde seus primeiros curtas.
Em uma entrevista, Bruno Forzani relembra que tudo começou com o cartaz de "Tenebre" (1982), em que era representada uma belíssima mulher morta, quando ele ficou fascinado pelas cores que iam do loiro saturado dos cabelos ao azul desbotado da pele, em choque por ter sentido atração por um cadáver.
De fato, é nisso que reside a essência do Giallo, os filmes de mistério sangrentos italianos: o equilíbrio entre a beleza refinada e a vulgaridade depravada.
Todavia, feita exceção por algumas obras que hoje são consideradas de culto, a maioria dos spaghetti thrillers, como também são conhecidos, não se passam de filmes de exploitation (filmes apelativos) que tentaram trilhar pelo caminho do sucesso desbravado por mestres da câmera como Mario Bava, Dario Argento, Sergio Martino e Lucio Fulci.
Bastaria isso para reconhecer o tamanho da proeza do casal: recuperar os topoi de uma moda antiga, explorada até o desgaste e a desvalorização, para então praticar uma releitura pós-moderna da mesma. A paleta de cores gritantes, os enquadramentos inusitados, a montagem acelerada, o ritmo sincopado das músicas, o uso e abuso do close-up leoniano, ou seja, todos os excessos típicos da estética do Giallo deixam de ser mero exercício de técnica rebuscada, para tornarem-se pura linguagem do meio cinema: mais do que nunca, faz-se necessária uma desconstrução da mise-en-scène para que possam ser testadas novas formas de comunicar.
A história em si não apresenta nada de inusitado: na primeira metade do filme, a protagonista coleciona uma série de traumas infanto-juvenis que, na segunda metade, enfrentará na tentativa de superá-los.
O que faz de "Amer" algo único é, justamente, como transpõe de forma complexa um conteúdo simples, o que não se traduz numa obra hermética, mas numa poética autoral repleta de detalhes e significados.
Em certo ponto do filme, uma Ana adolescente, de lábios carnudos e face sardenta, aceita, a princípio de má vontade, o desafio de uma criança. Então, os dois começam a correr atrás da bola pelas ruelas de seixo de um vilarejo mediterrâneo, quando a tensão sexual faz-se presente pelos enquadramentos: a câmera freme, os brancos queimam, os sons externos são abafados por arquejos e suspiros, os cortes se alternam frenéticos, até que o jogo dos dois é interrompido pela presença castradora de um grupo de motoqueiros. É quase um ritual de passagem: Ana deixa de lado os jogos da infância, postos em cena como verdadeiros preliminares, e aproxima-se do mundo dos adultos, num momento tão íntimo quanto constrangedor.
Um conjunto de sensações despejadas em uma seqüência extremamente breve, de cinco minutos, em que não é dita uma única palavra, sendo tudo comunicado exclusivamente através de imagens e sons.
Forzani & Cattet decompõem os elementos clássicos do Giallo num pastiche psicodélico para poder, assim, cavar fundo em seus personagens, suscitando o incômodo no público.
Impossível também não mencionar um dos filmes mais famosos do pai do Giallo, Mario Bava: "I Tre Volti della Paura" (1963). Se a película baviana era dividida em três episódios, cada um apresentando uma forma diferente do medo, "Amer" também segue o esquema da tripartição, mostrando três momentos marcantes da vida de Ana, em que sua percepção da sexualidade será modificada para sempre: como em todo Giallo que se respeite, aqui também observamos a junção entre erotismo e violência.
O próprio Forzani afirmou que a inspiração para o primeiro ato do filme veio justamente de "I Tre Volti della Paura"(1963). Em um dos contos posto em cena por Bava, é narrada a historia de uma enfermeira que rouba o anel do cadáver de uma anciã, para então, uma vez retornada em casa, sentir-se perseguida pelo espírito da mesma. Em "Amer", a pequena Ana faz o mesmo com o relicário do avô, o que permite ao seu inconsciente de emergir através de pesadelos inquietos que mesclam a opressão religiosa, a visão do sexo entre os pais e a figura assustadora da avó em luto. Em ambos os casos temos o uso recorrente da gota de água: lá onde Mario Bava limitava-se ao ploc ploc do foley (efeito sonoro) para moldar a suspense, Forzani & Cattet recorrem às livres associações do subconsciente de uma criança, num fluir de cenas que envolvem líquidos e sexualidade, desde uma poça de urina que se alarga por debaixo de uma porta até uma chuva de gotas de suor gerada pelos pais, os corpos se contorcendo contra o teto do quarto.
Se Mario Bava contava uma versão adulta das histórias de terror para crianças, Forzani & Cattet, através de uma linguagem revolucionária, se insinuam no público e o leva de volta à infância.
Desde o princípio de sua carreira, o casal belga teve a intenção de pôr o espectador numa situação de desconforto e perigo, sem, todavia, privá-lo do deleite do olhar. Eles falam da importância de estar <<sur le fil d'un rasoir>>, isto é, de estar na lâmina de uma navalha e, graças a "Amer", o objetivo foi alcançado.