Título Original: Once Upon a Time in Hollywood (EUA/2019)
Direção: Quentin Tarantino
Roteiro: Quentin Tarantino
Produção: Quentin Tarantino, David Heyman, Shannon McIntosh
Elenco: Brad Pitt, Leonardo DiCaprio, Al Pacino, Margot Robbie, Emile Hirsch, Margaret Qualley, Timothy Olyphant, Julia Butters, Austin Butler, Dakota Fanning, Bruce Dern, Mike Moh, Luke Perry, Damian Lewis.
Duração: 2h45
Sinopse: Los Angeles, 1969. Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) é um ator de TV que, juntamente com seu dublê, está decidido a fazer o nome em Hollywood. Para tanto, ele conhece muitas pessoas influentes na indústria cinematográfica, o que os acaba levando aos assassinatos realizados por Charles Manson na época, entre eles o da atriz Sharon Tate (Margot Robbie), que na época estava grávida do diretor Roman Polanski (Rafal Zawierucha).
Dentre os contos que compõem a coletânea de Kristen Roupenian, o que chamou minha atenção foi o incipit do segundo: “Jessica tinha doze anos em setembro de 1993 — vinte e quatro anos depois dos assassinatos cometidos pela família Manson, cinco anos depois de Hillel Slovak morrer de overdose de heroína, sete meses antes de Kurt Cobain dar um tiro na própria cabeça e três semanas antes de um homem com uma faca seqüestrar Polly Klaas numa festa do pijama em Petaluma, Califórnia” (Cat Person e outros contos, Cia. das Letras, 2019).
Além de dar uma aula sobre como cativar o leitor desde o primeiro parágrafo, fazendo com que o mood da estória se infiltre sorrateiramente, linha após linha, a autora me fez enxergar como as épocas são marcadas por traumas. A posteriori, pensei também em situar minha geração no meio das cicatrizes do mundo ocidental: mais ou menos por aí, entre a impunidade de O. J. Simpson, o escândalo em torno de uma felação praticada dentro das imaculadas paredes da Casa Branca e um punhado de muçulmanos suicidas chocando seus aviões contra as Torres Gêmeas.
“Look at Your Game, Girl”, não é somente o título do conto mencionado acima. É, também, o nome de uma canção composta por Charles Manson.
Para alguns, a década de 1960, com seu espírito hippie e sua pose rebelde, se encerrou no dia 9 de agosto de 1969, por conta do massacre perpetrado por alguns membros da Manson family, que levou à morte da atriz Sharon Tate e de seus amigos. Naquela época, Tarantino tinha apenas 6 anos de idade.
Quadro décadas mais tarde, o diretor de Knoxville revisita os fatos que levaram à eclosão daquela noite de terror, isto é, reescreve a história, a do cinema e, por que não?, a do mundo.
Filme nostálgico, Once Upon a Time in Hollywood (2019) acompanha a jornada de três personagens: Rick Dalton, astro em decadência relegado a uma série de papeis secundários em pilotos de séries televisivas; Cliff Booth, eterno dublê de Rick, que, além de substituí-lo nas cenas mais perigosas durante as filmagens, o ajuda a suportar os fracassos que vão se acumulando ao longo da carreira da dupla; e, enfim, Sharon Tate, estrela ascendente cuja beleza acaba ofuscando a inocência e a jovialidade que dela emanam.
Tarantino se interessa em pôr em cena diversas facetas do universo hollywoodiano. Sharon Tate está casada com Roman Polanski, este último sendo definido, por um dos personagens, como o maior cineasta em atividade, o cara que dirigiu o monumental Rosemary’s (fucking) Baby (1968): o casal alcançou o estrelato, os dois vivem mergulhados no american dream, constantemente embriagados pelo mundo etéreo do star system. Na mesma rua da mansão Polanski, na vila logo abaixo, sempre em Cielo Drive, mora Rick, cuja carreira está prestes a desembocar, trágica e comicamente, nos B Movies macarrônicos dirigidos por italianos — até aquele momento — desconhecidos, como Sergio Martino, Antonio Margheriti e Calvin Jackson Padget (pseudônimo de Giorgio Ferroni): lá onde Rick rejeita o fracasso à base do álcool, seu dublê não só o aceita, como parece querer abraçá-lo constantemente, chegando ao ponto de ser afastado dos sets de filmagens por ter dado uma lição de humildade a astros arrogantes. Enfim, à margem da sociedade, mas ao centro da narrativa, estão os artistas falidos do Spahn Ranch: em 1969, o clássico faroeste americano dava suas arfadas derradeiras, os lábios secos beijando a areia do deserto, e a indústria cinematográfica, logo, deu as costas ao George Spahn, um velho rancheiro que acabou acolhendo os adeptos ao culto de Manson em suas terras... e a Squeaky Fromme em sua cama.
Os dotes artísticos de Charles Manson não o levariam nem aos filmes de série Z, quem dirás a cantar ao lado dos tão adorados Beatles. Sua morte, ocorrida em 2017, tem feito com que diversos diretores se debruçassem sobre os horrores do Tate murders. Em 2018, a diretora Mary Harron, eternamente associada ao “American Psycho” (2000), revisitou o massacre pela perspectiva de três mulheres da família Manson, com o seu “Charlie Says”. No mesmo ano, Panos Cosmatos nos presenteou com o lisérgico “Mandy: Sede de Vingança” (2018): apesar de se passar num fantasioso ano de 1983, e do nome Manson nem ser sequer mencionado, o icônico vilão Jeremiah Sand, chefe de uma gangue de drogados, através de seus gestos brutais regados à LSD, nos remete aos homicídios perpetrados pela tenebrosa família dos anos 1960. Já em 2019, além do último trabalho de Tarantino, tivemos o abominável “The Haunting of Sharon Tate”, com uma péssima Hilary Duff na pele de uma esquecível Sharon Tate.
Só que Tarantino faz algo diferente, mesclando o legado de 1969 à tendência metalingüística adotada recentemente por alguns mestres da sétima arte: vimos os irmãos Coen homenagearem um tipo de cinema ainda inocente, às vésperas da caça às bruxas do McCarty, em “Ave, César!” (2016); dois anos antes, David Cronenberg dirigiu “Mapas Para as Estrelas” (2014), o canadense novamente interessado em mostrar a contaminação entre real e ficção, desta vez com base num drama meio que shakespeariano roteirizado por Bruce Wagner; por sua vez, David Lynch surpreendeu a todos com “Mulholland Dr.” (2001), em que a personagem de Naomi Watts mostra toda sua profundidade psicológica num brevíssimo instante de atuação, como se o norte-americano quisesse nos dizer que, paradoxalmente, nosso verdadeiro eu (ego) vem à tona somente quando nos perdemos num outro (alter), isto é, numa ficção.
Um dos momentos de metacinema que mais me impressionou em Once Upon a Time in Hollywood diz respeito ao conjunto de seqüências que envolvem Rick Dalton durante a gravação do piloto da série “Lancer”, quando o vemos interpretar o delinqüente Caleb DeCoteau. As cenas iniciais nos soam extremamente caricatas, e os esquecimentos do Dalton tornam ainda mais evidente que aquilo está longe de ser real. Todavia, após uma discussão séria com seu próprio reflexo no espelho do camarim, reminiscência do Vincent Vega em “Pulp Fiction” (1994), Dalton surpreende a todos numa cena climática em que aponta uma arma para a cabeça de uma criança: é cinema dentro do cinema, sabemos que a tensão inexiste, o que nos é mostrado é mais fictício que a própria diégese do filme, óbvio. Mas a forma como nosso protagonista veste a pele do vilão, num esforço incrível para se sair bem, termina até por nos comover.
Menos propenso à dramatização dos dois Davids, mais à vontade no gênero da comédia coeniana, Tarantino nos mostra um ano de 1969 que ele, provavelmente, gostaria de ter vivenciado nos noticiários: afinal, onde estavam os grandes heróis da telinha quando um bando de hippies drogados decidiu cometer aquele massacre?
A história é uma seqüência ininterrupta de traumas.
Não houve nenhum Aldo Raine para cravar suásticas nas testas dos nazistas. Não aconteceu de um escravo negro se tornar um caçador de recompensa capaz de exterminar um inteiro grupo de adeptos ao Ku Klux Klan. Nenhum judeu metralhou a cabeça de Hitler até reduzi-la a uma polpa informe e vermelha.
Só o cinema pode nos trazer conforto.
E Tarantino sabe disso.
O filme, uma produção de 2018, apresenta a rusalka, um ser da mitologia russa, que pode se assemelhar à sereia ocidental.