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O CLUBE DOS CANIBAIS

Por: Dino Lucas Galeazzi

Brasil - 2018
Direção: Guto Parente
Roteiro: Guto Parente.
Produção: Blumhouse Productions, Monkeypaw Productions.
Elenco: Tavinho Teixeira, Ana Luiza Rios and Pedro Domingues.
Duração: 116 min.


Sinopse: Otavio e Gilda são da elite brasileira e membros do The Cannibal Club. Os dois têm como hábito, comer seus funcionários. Quando Gilda acidentalmente descobre um segredo de Borges, um poderoso congressista e líder do clube, ela acaba colocando sua vida e a de seu marido em perigo.



Uma música ambiente acompanha imagens de um Brasil burguês e opulento: vila, sol, praia, piscina, patrão de sunga no churrasco, patroa em biquíni de tigresa, empregado trabalhando com um sorriso no rosto, etc. Na cena sucessiva, o patrão, Otávio, num discurso cordialmente suspeito, pede para que o empregado tome conta da patroa, Gilda, enquanto estará em Fortaleza, por motivos de trabalho. Em seguida, o óbvio e esperado momento de intimidade entre o empregado e Gilda é interrompido de forma brutal por Otávio, que estava assistindo a tudo de seu esconderijo. Com o crânio partido ao meio, o empregado morre em agonia, enquanto Gilda vibra de prazer ao espalhar o sangue da vítima pelo corpo. Otávio, numa mistura de prazer e dor, despeja gotinhas de esperma num tapete manchado de vermelho.    


Desde a primeira seqüência, Guto Parente estabelece o registro estilístico que regerá a diegese da obra: temos os tempos dilatados típicos de uma mise-en-scène realística, claramente em contraste tanto com a atmosfera satírica que permeia a narrativa como um todo, bem como com os pontuais momentos de gore extremo, oriundos do universo dos B-movies.



“O Clube dos Canibais” (2018) pertence ao mais recente universo horrorífico dos cannibal movies. Se no cinema do século passado o canibalismo resumia-se a um grotesco atributo de algum serial killer, como nos emblemáticos casos de Leatherface e de Hannibal Lecter, ou, também, a uma práxis primitiva de alguma tribo antagonista, haja vista do Cannibal Boom macarrônico da década de 1980, hoje é entendido como uma pulsão natural ao ser humano, um mal atávico que foi sufocado pelos preceitos éticos do indivíduo. Destarte, na cartografia do cinema de gênero, podemos identificar um deslocamento interessante: o que nos assusta, isto é, a potencial antropofagia do ser humano, não é mais algo à margem da sociedade ocidental, tratando-se, in vero, de algo intrínseco a ela mesma.


O canibal não somente mora ao lado, como, também, está aninhado nas entranhas de todos nós, aguardando o momento propício para se manifestar. Sua antropofagia, não mais relegada ao mero espetáculo terrífico, está carregada de significados. Em “Grave” (2016), por exemplo, ao passo que a protagonista Justine desenvolve seu desejo sexual, a mesma sente o frenesi de arrancar nacos de pele dos colegas de faculdade, indo contra as regras da família – rigorosamente vegetariana – e da sociedade – rigorosamente repressiva. Por sua vez, em “Desejo e Obsessão” (2001), a diretora Claire Denis utiliza-se da fome por carne humana vivenciada por dois personagens distintos – o doutor Shane Brown e a femme fatale Coré – para denunciar o machismo ínsito à sociedade francesa, uma vez que somente o primeiro não é punido por seus instintos primitivos. Em “The Woman – Nem Todo Monstro Vive na Selva” (2011), enfim, assistimos ao embate entre uma selvagem antropófaga e o pater familias doentio que a capturou: em particular, vemos o segundo reeducando a primeira, impondo, ao mesmo tempo, uma dieta socialmente aceitável e a esperada submissão sexual. Mais do que simplesmente satisfazer o anseio do público por uma justiça reacionária, a truculência da cena final manifesta a liberação da mulher das amarras sociais.



Como podemos perceber, nos recentes cannibal movies, sexo e morte andam de mãos dadas. Aqui, a conotação sexual que o brasileiro atribui ao verbo comer é finalmente posta em cena, eviscerada, desmembrada: a violência gráfica, artifício típico do gênero do horror, expõe a dominação semiótica presente nesta peculiaridade lingüística. O fato de ser (quase) sempre o homem quem come, e a mulher quem é comida, nos diz que o coito não é percebido como um encontro entre iguais. A hierarquia social estende-se, assim, ao domínio do sexo.


Ou seja, nem na cama, por debaixo dos lençóis, no entrelaçar-se dos corpos despidos, nem no vestígio daquilo ao qual podemos ainda apontar o dedo e chamar de íntimo, nem aqui, dizia-se, estamos imunes aos discursos do poder.


É algo assustador, como uma ferida aberta e purulenta que preferimos não olhar, mas que Guto Parente cutuca sem piedade.



Otávio e Gilda não são somente parte da elite brasileira, como são membros fidedignos do Cannibal Club, um círculo de ricos que, regularmente, reúne-se para devorar outros seres humanos. A devoção do casal protagonista para com o clube é tamanha que os dois acabaram por incorporar gestos e dogmas e rituais do mesmo à própria rotina sexual. A vítima escolhida pelo casal há de ser abatida exatamente no clímax do sexo, quando os três envolvidos estão próximos a atingirem o orgasmo.


No decorrer do filme, descobrimos que as práticas adotadas por Otávio e Gilda nada mais são que uma versão mais ativa e participativa e arriscada daquilo que ocorre nos jantares secretos organizados pelo Cannibal Club. Regularmente, os membros masculinos do grupo, liderados pelo deputado Borges, reúnem-se em galpões anônimos e abandonados para assistirem à performance sexual de um casal pobre que, após alguns minutos, é massacrado por um assassino mascarado. Em seguida, as carnes dos dois são grelhadas e servidas num rodízio canibal e elitista.


O elo entre o que ocorre no Cannibal Club e o que Otávio e Gilda reproduzem sistematicamente na cama é, claramente, o gozo.



Curiosamente chamado pelos franceses de la petite mort, isto é, a pequena morte, o gozo pode ser visto e vivido, de fato, como um momento de dispersão, um hiato pelo qual poder escapar à pressão social, uma falha, uma lacuna, um vácuo num todo sistêmico esmagador. A raison d’être, isto é, a razão de ser do orgasmo de Otávio e Gilda reside, portanto, não no canibalismo em si, mas, sim, na idéia de privar o pobre do gozo, de extirpar-lhe aquele único momento, efêmero e ilusório, de inexistência das hierarquias.


O mecanismo que rege tanto o casal como o clube deixa de funcionar uma vez que Gilda flagra o deputado Borges sendo sodomizado por um de seus empregados. O fator catastrófico não reside na descoberta da homossexualidade do líder grupo, mas na deflagração da lógica hierárquica propiciada por este último, submisso a alguém de nível social mais baixo. Um verdadeiro e próprio escândalo.


Apesar dos deslizes aqui e ali no primeiro ato, fazendo com que a elite brasileira por ele imaginada soe extremamente caricata e previsível, Guto Parente se recupera num final extremamente cínico e imprevisível, nos entregando um filme de horror genuíno, capaz de criticar a política nacional sem, todavia, soar panfletário. Enfim, uma grata surpresa.


Trailer:   



 

Resenhas
https://www.cinehorror.com.br/resenhas/o-clube-dos-canibais?id=224
| 1709 | 27/03/2019
O Clube dos Canibais pertence ao mais recente universo horrorífico dos cannibal movies. Guto Parente nos entrega um filme de horror genuíno, capaz de criticar a política nacional sem, todavia, soar panfletário. Uma grata surpresa.
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