Título Original: Piercing (EUA – 2018)
Direção: Nicolas Pesce
Roteiro: Nicolas Pesce, baseado no romance de Ryû Murakami.
Produção: Jacob Wasserman, Josh Mond, Antonio Campos e Schuyler Weiss.
Elenco: Christopher Abbott, Mia Wasikowska, Laia Costa, Marin Ireland, Maria Dizzia, Wendell Pierce.
Duração: 81 min.
Sinopse: Um homem (Christopher Abbott) dá um beijo de despedida na esposa e no seu bebê, aparentemente se despedindo para ir aos negócios, chamar um serviço de escolta e matar uma prostiturta desavisada. Seu plano vai por água abaixo quando a misteriosa e sedutora garota (Mia Wasikowska) que ele chamou inicia um jogo de gato e rato.
Nicolas Pesce havia chamado a atenção do público e da crítica em 2016, com “Os Olhos da Minha Mãe”. O filme de estréia do diretor nova-iorquino é, certamente, de difícil catalogação no cenário do cinema de horror contemporâneo: por um lado, plot e cenário remetem à atmosfera tenebrosa e fabular do clássico de Charles Laughton, “O Mensageiro do Diabo” (1955), nos privando, todavia, da presença de qualquer personagem salvífico; por outro lado, a proximidade para com a rotina de uma personagem psicopata nos faz lembrar diversos títulos, desde “Psicose” (1960), do Hitchcock, a exemplos mais extremos, como “O Massacre da Serra Elétrica” (1974) e “Retrato de um Assassino” (1986).
Em 2018, Pesce renova seu interesse por mentes doentias, mas deixa de lado a monocromia do filme anterior, lançando mão de uma viva paleta de cores, e, também, troca a solidão de Francisca, personagem principal da obra-primeira, por uma dupla de amantes noctívagos, isto é, o inexpressivo Reed e a emocionalmente instável Jackie, vividos, respectivamente, por Christopher Abbott e Mia Wasikowska.
“Piercing” (2018) é a história de um encontro, o relato do choque entre duas pessoas solitárias, com seus traumas sendo revelados num horrorífico slow burning, os desejos de ambos se moldando em prol de um encaixe perfeito.
No desenrolar dos créditos da película, tanto no começo como no fim, a câmera flutua entre os prédios de uma cidade anônima, feita de construções em miniatura, um verdadeiro e próprio dédalo de blocos coloridos e simétricos, que emanam uma sensação de claustrofobia. De fato, no decorrer do filme, não há um único plano que não seja fechado, sufocante, e Reed é a manifestação física da repressão imposta pela metrópole, com a fachada do perfeito pater familias prestes a ruir. Para evidenciar este aprisionamento psicológico, a direção de Pesce mostra-se sutil, porém eficaz. Em determinado momento, vemos Reed à mesa de trabalho. Ele interrompe seu desenho geométrico e olha para a janela. Seu vulto é cortado pelas lâminas verticais de uma persiana, as quais remetem às grades de uma prisão. Em uma cena anterior, a câmera captura um primeiro plano do protagonista em contra-plongée, um enquadramento que, normalmente, deveria sublinhar a superioridade de Reed em relação ao ambiente, mas que, aqui, só ressalta o quanto o mesmo sente-se esmagado, uma vez que o observamos pressionar a própria garganta com as mãos. Um reflexo roseado, o mesmo que pairava em seu quarto de casal, iluminando o berço do filho, agora o cerca, o encurrala, o oprime. Enfim, na primeiríssima cena, a ponta de um furador de gelo passeia perigosamente pelo rosto do bebê de Reed e sua esposa, Mona. Sucessivamente, num plano detalhe da mão do nosso anti-herói, descobrimos que o metal da arma é curiosamente idêntico ao do anel de casamento.
Que tenha sido a rotina exaustiva, dividida entre as frustrações do trabalho e a alienação do lar familiar, a levar Reed à loucura? Esta fúria homicida é realmente resultado da somatória de eventos traumáticos recalcados? Não seria, talvez, o vazio e o tédio da existência pós-moderna a terem elegido dois pesadelos sexuais, um da infância e outro da adolescência, enquanto justificativas psicológicas para que ele possa, então, massacrar seu próximo sem remorsos? “Piercing” parece apontar para esta última hipótese.
Erroneamente, Mona interpreta o sofrimento do marido como sendo uma conseqüência do trabalho excessivo e, portanto, o consola. Mas pelos lábios do bebê, num inesperado momento alucinatório, descobrimos a verdade: Reed precisa matar alguém. Em um caderno vermelho, Reed anotou todos os detalhes sobre o assassinato que planeja pôr em ato naquela noite, desde a estimativa do tempo necessário para executar o homicídio, até uma lista dos itens que pretende utilizar para torturar a vítima, a qual, como ele mesmo estipulou, há de ser uma prostituta que fale inglês (pois o medo há de ser em inglês), disposta, inclusive, a praticar sadomasoquismo. Todavia, nas entrelinhas, para além de descrições sórdidas e idéias perversas, escondem-se traumas passados que o marido não confessa à esposa, mas que uma amante casual, neste caso, Jackie, poderá ter acesso no final do filme.
Mais que a violência, é, portanto, a incomunicabilidade o que realmente assombra as personagens. E o que não é dito por diálogos, certamente é manifestado pela mise-en-scène. O mood da película é estabelecido pela forma como as personagens são postas em cena.
Consideremos, por uma segunda vez, a introdução do filme.
Plano: Reed está perto de matar seu filho com um furador de gelo, mas é interrompido pela esposa. Contraplano: Mona pergunta ao marido o que está fazendo acordado àquela hora da noite.
Em seguida, outra cena. Plano: Reed está deitado no colo da esposa, seu rosto ocupando a tela em primeiríssimo plano. Contraplano: Mona lhe diz que está cansado e o acaricia, mas agora é ela a preencher o quadro em primeiro plano.
Marido e mulher, apesar de estarem localizados nos mesmos espaços diegéticos, não compartilham nenhum plano. Pesce reforça a ausência de um verdadeiro contato entre os dois na cena sucessiva. Vemos Reed se enxugando em frente ao espelho do banheiro. Sua esposa também está lá, falando com ele, fazendo-lhe perguntas sobre uma conferência de trabalho inexistente, um álibi criado pelo protagonista para sua noite de crime. Aqui, apesar de serem flagrados pela câmera no mesmo ambiente, há uma ausência de contato visual entre as personagens, pois o diálogo é mediado por um espelho.
Sejamos sinceros. A nossa é uma sociedade narcísica, feita, essencialmente, de abismos nietzschianos encobertos por superfícies lustrosas. No caso de “Piercing”, a superfície escolhida é a do espelho. Toda a primeira metade do filme é focada não tanto nas personagens, quanto em seus reflexos. Ao chegar ao hotel, Reed liga para a esposa e conta-lhe uma série de mentiras. Enquanto faz isso, a câmera se afasta para nos mostrar sua imagem refletida: é como se não estivéssemos olhando para ele em si, mas somente para aquilo que ele mostra à esposa e, por conseqüência, à sociedade.
Da mesma forma, após acordar, Jackie posiciona-se em frente aos diversos espelhos espalhados pelo seu aposento, e é por meio destes que a vemos se preparar para uma noite de sexo: ainda está longe o momento em que ela se abrirá para Reed e para o público, mostrando sua fragilidade emotiva e as cicatrizes que marcam suas pernas. Estas últimas, inclusive, não seriam, por acaso, uma referência a uma celebre mulher fatal do cinema asiático, a temível Asami Yamakazi, também criada pela caneta de Ryu Murakami, mas posta em cena por Takashi Miike, em sua obra-prima “Audição” (1999)? O citacionismo de Pesce não para por aí, pois homenageia as trilhas de alguns filmes giallo: por exemplo, enquanto os dois amantes se preparam para o encontro, o diretor, ao invés de recorrer a uma óbvia montagem paralela, utiliza-se de um split screen depalmiano, e põe para tocar o tema do filme “Prelúdio Para Matar” (1975). A seqüência nos mostra que estamos observando mundos separados, opostos, pois, Jackie é acompanhada por cores frias, enquanto Reed é cercado por tonalidades quentes.
De toda forma, são sempre os reflexos a dominarem o encontro entre Reed e Jackie. Os dois se entreolham por meio de um gigantesco espelho posto na entrada do quarto. A câmera brinca com a profundidade de campo, focando ora a personagem, ora seu reflexo. Por um breve instante, os dois ocupam o mesmo enquadramento, mas encontram-se separados por uma mesa. Após as primeiras formalidades, Reed e Jackie falam sobre o ato sexual que, presumivelmente, será consumido em breve. O dialogo se dá por meio de planos e contraplanos. Mesmo local, mas com as personagens separadas, cada uma em seu respectivo enquadramento. Pesce nos diz que ainda estamos no mundo das superfícies, das mentiras e das aparências. De repente, uma risada inapropriada rompe com a encenação de Jackie. Ofendida, ela não consegue mais se masturbar em frente ao cliente e, portanto, vai ao banheiro. Lá, a mesma se auto-mutila com um par de tesouras. Com receio do ter a noite estragada, Reed intervêm, impedindo que Jackie continue se machucando. Ele a segura com força, a mão tentando abafar um grito. Ela, em contrapartida, crava os dentes entre o dedo e o polegar do cliente, dilacerando sua pele. É uma cena forte, com os dois, finalmente, compartilhando o mesmo enquadramento, numa proximidade perigosa, demasiadamente íntima.
Pelo resto do filme, vemos os dois personagens dividindo as cenas como um bizarro casal romântico.
Reed e Jackie em um taxi, rumo ao hospital: o primeiro plano dele é invadido, de repente, pelo rosto dela, que deita a cabeça em seu ombro.
Reed e Jackie em outro taxi, rumo, agora, ao apartamento dela: a janela do veículo cria um segundo quadro menor dentro do quadro da tela, a prostituta cada vez mais apaixonada pelo seu cliente, os rostos de ambos sendo iluminados pelos neons da cidade, a câmera se aproximando aos poucos, até Jackie perguntar a Reed se irão ficar juntos para sempre.
Reed e Jackie deitados na cama dela, com ela descrevendo minuciosamente as características peculiares do lençol de seda. Os planos cada vez mais fechados, os corpos cada vez mais próximos, um em cima do outro. Ela lhe pede para imaginar ele olhando-a de cima, com a seda molhada com todo tipo de coisa. Ele pensa em homicídio e logo se levanta para pegar o material dentro de sua mala. Reed corta o clima do momento. Por sua vez, Pesce corta a tela ao meio, em outro split screen. Em Jackie surge a dúvida de que Reed queira, simplesmente, usá-la para uma noite de aventura e, então, ela lhe pergunta se, antes de qualquer coisa, podem comer.
Após esta série de desentendimentos, resultado, sim, do egoísmo de Reed, mas, também, representação da incomunicabilidade pós-moderna, há uma reviravolta: o predador (Reed) torna-se presa, e a presa (Jackie) torna-se predadora. Descobrimos que Jackie pôs uma quantidade excessiva de Halcion na sopa de Reed, provocando neste último uma overdose de triazolam, levando-o, assim, a vivenciar uma série de alucinações, trazendo à tona momentos escabrosos de seu passado: a visão da mãe praticando sexo sadomasoquista com um desconhecido; a lembrança de uma menininha, pela qual se sentia atraído, mas também horrorizado, uma vez que a mesma esfaqueou (com um par de tesouras), na frente dele, um coelho doméstico; a imagem da violência materna que lhe fora perpetrada na puberdade, resumida num close-up da ponta incandescente de um cigarro prestes a ser apagada em seu olho; o momento em que foi humilhado por uma amante de idade mais avançada, da qual ainda guarda uma foto polaroid em seu diário vermelho, os lábios desta última pronunciando ofensas sobre seu complexo de Édipo, levando um Reed adolescente e sensível a cometer um homicídio (com um furador de gelo).
Neste momento, do esgoto do banheiro, emerge uma figura grotesca, uma espécie de kaiju em miniatura, um monstro que tudo destrói, que traz consigo litros e litros de fluídos viscosos, afogando Reed num mar de gosma. Numa perspectiva zizekiana, a criatura nada mais seria que uma representação da pulsão de morte freudiana, ou melhor, da lamela lacaniana, isto é, pura força libidinal, a mesma que forjou criaturas aterrorizantes como o alienígena de John Carpenter em “O Enigma de Outro Mundo” (1982), ou o alienígena de Ridley Scott em “Alien, o Oitavo Passageiro” (1979). Como Pesce deixa claro em seu filme, esta pequena aberração habita a intersecção do imaginário com o real: em poucas palavras, trata-se de uma fantasia criada por Reed para lidar com aquele Real que lhe escapa, que nos escapa. O mini-kaiju leva o protagonista a matar o próximo, a dissolver identidades alheias, recalcando as feridas do passado.
Enquanto devaneia, Reed comete o erro de pronunciar o nome de outra mulher: em desespero, ele chama pela esposa, Mona. Jackie, então, por um lado tomada por um ciúme doentio, por outro se entregando ao jogo sadomasoquista iniciado pelo cliente, arma-se com um abridor de latas e desfere vários golpes contra o corpo do parceiro, desfigurando-lhe o rosto. Então, Reed recupera a consciência, mas somente por um breve período de tempo: após ter amarrado a vítima, anunciando, inclusive, sua intenção de perfurá-la à morte, a realidade entra em colapso, e ele desmaia ao sentir um forte tremor sacudir-lhe o corpo. Excesso de Real, talvez? Afinal, os monstros só podem habitar o nosso imaginário.
Na cena sucessiva, Jackie se depara com o diário de Reed, entrando em contato com seu inconsciente. Em particular, uma frase destaca-se dentre as demais: “E se ela lutar de volta? E se ela me magoar? Talvez não seria algo tão ruim”.
Surge um novo dia. Reed acorda confuso e amarrado. Uma mordaça, a mesma que ocupava a boca de sua mãe quando a descobriu praticando sadomasoquismo, agora lhe impede de gritar, de falar, de dialogar. Jackie o acaricia e lhe deseja um bom dia. Enquanto prepara o café da manhã, a mesma tira um tempo para perfurar seu mamilo esquerdo com uma agulha. Vemos uma gota de sangue brotar da pele, escutamos o som úmido de um pedaço de carne sendo perfurado. Reed consegue articular uma pergunta e Jackie lhe explica que está fazendo algo para se lembrar daquele momento especial. Pesce captura a inserção do piercing no plano detalhe mais fechado de todo o filme.
A violência de Reed está circunscrita ao domínio do imaginário, incapaz de se materializar de forma concreta, lá onde as fantasias de Jackie são as únicas capazes de obter uma feição corpórea. Em outros termos, percebemos o seguinte: a identidade masculina é um clichê, sendo esta o resultado de um óbvio processo que envolve imagens de castração, já usadas e abusadas ao longo da história da sétima arte; ao contrário, a identidade feminina é algo desconhecido, um terreno movediço, sujeito a uma imprevisibilidade aterradora.
Reed é fixo, uma personagem definida por preceitos psicanalíticos. Jackie é tão instável quanto insondável, suas tendências masoquistas reivindicando para si o sonho molhado do homem de poder humilhar a mulher durante o ato sexual. Se para Lacan a mulher não existia, então esta inexistência está longe de nos confortar.
A este ponto, Jackie deita Reed no sofá e se posiciona em cima dele. Ela faz deslizar a ponta do furador de gelo pelo abdômen do amante, até encontrar um local onde praticar uma perfuração não-mortal. Temos aqui uma série de planos e contraplanos: quando um dos dois está em foco, dominando o enquadramento, o outro está desfocado e ocupa um canto da tela. Porém está presente, como que querendo compartilhar a cena, o clímax.
Jackie se prepara para golpear Reed, mas este a interrompe para falar algo. Jackie remove a mordaça. Reed pergunta se, antes de qualquer coisa, podem comer algo. Jackie sorri. Escutamos a banda italiana Goblin tocando o tema do filme “Trauma” (1993), de Dario Argento.
O filme, então, se encerra de forma abrupta, chocante, traumática... perfeita.
Clive Barker, além de ciar um personagem icônico, sedutor e temido, explorou problemas sociais aos quais nos passam despercebidos.