Título Original: Upgrade
Direção: Leigh Whannell
Roteiro: Leigh Whannell
Produção: Blumhouse Productions, Automatik Entertainment, Film Victoria, Goalpost Pictures.
Elenco: Logan Marshall-Green, Betty Gabriel, Harrison Gilbertson e Bento Hardie
Grey Trace é um tecnófobo. Num futuro não muito distante, ele é um dos poucos cidadãos que ainda resiste às pressões de uma tecnologia digital ubíqua. Paradoxalmente, sua esposa, Asha, trabalha pela Cobolt, empresa especializada na construção de próteses robóticas para soldados feridos.
Entre uma cerveja e outra, enquanto escuta vinis num toca-discos empoeirado, Grey conserta motores de carros antigos para ricos colecionadores.
Um dia, Grey pede para que Asha o acompanhe até a vila de um de seus clientes, para que possa devolver uma lustrosa Firebolt: o proprietário desta nostálgica preciosidade é Eron Keen, fundador da companhia Vessel, uma rival da Cobolt. Eron, numa tentativa de impressionar os hóspedes, mostra ao casal sua última criação: STEM, uma inteligência artificial infinitamente superior ao cérebro humano.
Voltando para casa, o filme toma um rumo inesperado: o sistema operativo do carro de Asha é seqüestrado e os dois, após sofrerem um acidente, são agredidos por quatro criminosos.
Asha morre. Grey sobrevive, mas seu ferimento é tão grave que ele torna-se um tetraplégico.
Enquanto a polícia não consegue encontrar os culpados, Grey recebe a visita de Eron, que lhe oferece a possibilidade de caminhar novamente através de um procedimento cirúrgico experimental: a instalação do micro-chip STEM em sua espinha dorsal.
A experiência é um sucesso. Mesmo que de forma mecânica, Grey volta a locomover-se... e seus primeiros passos o levam para o caminho da vingança.
Apesar de “Upgrade” (2018) ser somente seu segundo longa-metragem, Leigh Whannell trabalha no cinema há quase quinze anos. Desde 2004 seu nome vem sendo eclipsado pelo do amigo James Wan: Leigh escrevia e James dirigia, o que resultou numa série de filmes de enorme sucesso de público, como a franquia dos “Jogos Mortais” (Saw, 2004-2017) e “Sobrenatural” (Insidious, 2010).
Nascido em Melbourne, Austrália, Leigh acredita ter herdado da mãe a paixão por criar histórias e do pai, o gosto pelo cinema. Provavelmente foi a junção destas duas influências que o levaram a criar uma obra extremamente original: sem dúvida, “Upgrade” é um dos melhores SciFi dos últimos anos.
Especialmente no meio cinematográfico, usa-se e abusa-se do termo obra-prima para descrever qualquer filme que tenha arrancado elogios de público e de crítica: sites agregadores de notas como Rotten Tomatoes e Metacritic podem fazer de filmes como o último dos Vingadores (Marvel’s The Avengers, 2012-2018), que propõe uma pequena variação da mesmice de sempre, sucessos instantâneos. Talvez seja exagero falar de “Upgrade” como de uma obra-prima, mas, enquanto ficção científica, ele mostra sua grandiosidade por voltar à razão de ser do próprio gênero, uma vez que aqui o efeito especial não serve exclusivamente para criar espetáculo, mas, sim, como meio de desconstrução da gramática cinematográfica. Incentiva-se, assim, uma reflexão não só sobre o filme, mas sobre o meio tecnológico que o projeta.
Antes de conquistar as massas para tornar-se puro entretenimento, graças a recentes sucessos como “Avatar” (2009) e os demais filmes do MCU*, o SciFi era um gênero que veiculava idéias.
“Plataforma” (La Jetée, 1962), de Chris Marker, apresenta-se não como filme, mas como foto-romance: exceto que por uma única cena, de poucos segundos, todo o filme é narrado por uma sucessão de fotos. Numa Paris pós-apocalíptica, um grupo de cientistas aproveita-se de um jovem que suporta o esforço mental da viagem do tempo porque obcecado pelo rosto de uma mulher numa fotagrafia de infância. Marker, então, utiliza-se do efeito especial, isto é, dos frames congelados, para refletir sobre o poder da imagem, o poder do cinema.
“Videodrome – A Síndrome do Vídeo” (Videodrome, 1983), de David Cronenberg, ampara-se na maquiagem prostética de Rick Baker, na montagem invisível de Ronald Sanders e na trilha invasiva de Howard Shore para criar um efeito especial alucinatório: não apontando para o mero espetáculo cinemático, o diretor transita sutil e continuamente entre a realidade e devaneio, a tal ponto que o público, assim como o protagonista, não consegue mais distinguir um estado do outro. Cronenberg critica a imagem, o poder que o cinema, e as demais mídias, carrega consigo.
“Upgrade” não chega tão longe quantos as obras mencionadas acima, mas suas seqüências de ação não se limitam a entreter, nos lançando um questionamento: hoje em dia, quanto do cinema depende da tecnologia? Ou melhor, quanto pouco há de humano num SciFi contemporâneo?
Quando em dificuldade, encurralado pelos inimigos, Grey pede para que STEM tome temporariamente o controle de seu corpo: então, a inteligência artificial, operando braços e pernas enquanto suas extensões, torna-se uma verdadeira e própria máquina mortífera. Nessas cenas, o entretenimento não é gratuito: da mesma forma que o corpo de Grey é comandado por uma máquina, a câmera move-se segundo algoritmos precisos, operada não por um diretor, nem por um operador de câmera, mas por um computador.
O resultado coincide com cenas de ação que são de puro regozijo para os olhos... mas também um alerta para o espectador mais atento: o cinema está deixando de ser a arte dos homens para tornar-se indústria das máquinas.
A película morreu e nasceu o digital: telas verdes, computação gráfica, captura de movimentos, drones, braços mecânicos, etc. Qual o próximo passo?
Repleto de cenas de sangue, “Upgrade” deixa de lado o SciFi para brincar com o gênero horror.
A sinopse recicla enredos e conceitos de obras de culto da década de 1970 e 1980. Temos uma história de vingança à la “Desejo de Matar” (Death Wish, 1974) e um protagonista tetraplégico em contato com a última novidade/ aberração científica, como em “Instinto Fatal” (Monkey Shines, 1988). Os cenários externos nos remetem ao clássico “RoboCop – O Policial do Futuro” (RoboCop, 1987), enquanto os internos relembram o esquecido “Geração Proteus” (Demon Seed, 1977). O final é crítico, feroz, um soco no estômago à ideologia conformista da saga Matrix (1999-2003).
“Upgrade” ainda não tem previsão de estréia para os cinemas brasileiros.
*MCU: Marvel Cinematographic Universe, filmes de super-heróis pertencentes ao universo criado por Stan Lee.
A BESTA é um trabalho indispensável para os fãs de horror.